Lendo gente de quem discordo
Por conta de alguns projetos que, se Eris e Dysnomia quiserem, devem dar frutos no ano que vem -- e também por uma medida de arejamento mental -- ando metido, nos últimos tempos, na leitura de uma série de livros de autores com quem tenho discordâncias profundas. Nesta sexta, aproveitando o feriado do servidor público, peguei, de uma sentada só, o clássico Dynamics of Faith, de Paul Tillich.
Tillich, já falecido, é considerado um dos principais teólogos cristãos do século passado, e um símbolo do tipo de teologia sofisticada e intelectualmente responsável que muita gente cita em oposição às "caricaturas grosseiras" supostamente construídas por Richard Dawkins e Christopher Hitchens em seus ataques à religião. Mas, afinal, o que é uma teologia sofisticada? Num dado momento, discutindo a existência de Deus, Tillich escreve:
"Se 'existência' se refere a algo que possa ser encontrado dentro da totalidade da realidade, então nenhum ser divino existe". Ora bolas, até eu concordo com isso. E até aposto que Dawkins e Hitchens, também.
O livro é, de fato, um exercício semântico no qual o autor busca redefinir fé, salvando-a da acepção "absurda" de "crença na ausência de evidências", o que não passaria de uma "forma inferior de conhecimento", e passa a tratá-la como "um compromisso definitivo e absoluto" (ultimate é a palavra que ele usa, no original em inglês).
Esse "compromisso" seria o princípio organizador da personalidade do indivíduo, a prioridade à qual ele subordina todas as outras prioridades de sua vida.
Daí ele deduz que uma pessoa sem fé é uma impossibilidade, que mesmo alguém que tenha desistido de se importar com o sentido da vida cedo ou tarde acaba sucumbindo ao imperativo de encontrá-lo -- isto é, à fé. E que, claro, as pessoas que argumentam contra a fé dos outros na verdade o fazem motivadas por uma fé própria, o que torna impossível refutar qualquer tipo de fé.
Se você sentiu o aroma da Falácia do Verdadeiro Escocês, não foi o único.
A favor de Tillich, é preciso dizer que essa conceptualização mais generalizada de fé que ele oferece tem algumas vantagens, a despeito de se prestar ao uso falacioso apontado acima.
Como o próprio autor reconhece, algo que seja o princípio organizador fundamental da vida e da personalidade de uma pessoa tem um forte potencial para também ser a chave de um enorme baú de atrocidades -- já que todas as demais considerações, como verdade, justiça e compaixão estão subordinados a esse princípio, que pode ser, por exemplo, o sucesso financeiro, a honra da família, etc.
Tillich então distingue entre fé -- o compromisso definitivo da vida -- e o objeto da fé -- a coisa com que a pessoa que tem fé está comprometida. Sendo um teólogo cristão, ele logo trata de estabelecer uma distinção entre o absoluto ("ultimate") -- que seria o objeto ideal da fé, e do qual Deus é um símbolo -- e os ídolos, os objetos inadequados, que incluem dinheiro, poder, nação, família e, mais importante, os símbolos do absoluto que passam a ser tomados pelo absoluto.
É esse último tipo de idolatria, diz ele, que leva ao fanatismo religioso, à violência religiosa, etc. É à tendência humana à idolatria, também, que ele atribui as tentativas de "usar o absoluto em proveito próprio, como nas práticas mágicas e preces". Nessa acepção, provavelmente 99,9% da cristandade é composta por idólatras.
Se você está esperando uma definição clara do "absoluto", não prenda a respiração. Ele é o amor, a justiça, a verdade; a fundação de todo o ser; aquilo de que fomos separados e a que ansiamos por retornar; a intuição do infinito; entre outras coisas. Pessoalmente, ao longo do texto, fiquei com a impressão de que, no fundo, se trata de mistura de medo da morte com nostalgia do útero.
Falando no texto: é uma leitura agradável e, com o perdão da palavra gasta, instigante. Tillich peca, a meu ver em dois pontos: ao cometer uma generalização injustificada, afirmando que nenhum ser humano pode viver por muito tempo sem uma grande preocupação central em sua vida -- ele nunca leu o Eclesiastes? -- e, também, por paroquialismo, ao afirmar que, de todas as formas organizadas de expressar essa preocupação -- "fé" -- o cristianismo protestante é a que menos risco oferece de descambar para a idolatria.
Enfim, se todos os cristãos fossem tillichianos, não teríamos uma bancada evangélica e nem o Vaticano estaria sabotando programas de planejamento familiar pelo mundo. A respeitabilidade intelectual da empreitada ainda seria altamente questionável, mas o mundo provavelmente seria um lugar melhor.
Tillich, já falecido, é considerado um dos principais teólogos cristãos do século passado, e um símbolo do tipo de teologia sofisticada e intelectualmente responsável que muita gente cita em oposição às "caricaturas grosseiras" supostamente construídas por Richard Dawkins e Christopher Hitchens em seus ataques à religião. Mas, afinal, o que é uma teologia sofisticada? Num dado momento, discutindo a existência de Deus, Tillich escreve:
"Se 'existência' se refere a algo que possa ser encontrado dentro da totalidade da realidade, então nenhum ser divino existe". Ora bolas, até eu concordo com isso. E até aposto que Dawkins e Hitchens, também.
O livro é, de fato, um exercício semântico no qual o autor busca redefinir fé, salvando-a da acepção "absurda" de "crença na ausência de evidências", o que não passaria de uma "forma inferior de conhecimento", e passa a tratá-la como "um compromisso definitivo e absoluto" (ultimate é a palavra que ele usa, no original em inglês).
Esse "compromisso" seria o princípio organizador da personalidade do indivíduo, a prioridade à qual ele subordina todas as outras prioridades de sua vida.
Daí ele deduz que uma pessoa sem fé é uma impossibilidade, que mesmo alguém que tenha desistido de se importar com o sentido da vida cedo ou tarde acaba sucumbindo ao imperativo de encontrá-lo -- isto é, à fé. E que, claro, as pessoas que argumentam contra a fé dos outros na verdade o fazem motivadas por uma fé própria, o que torna impossível refutar qualquer tipo de fé.
Se você sentiu o aroma da Falácia do Verdadeiro Escocês, não foi o único.
A favor de Tillich, é preciso dizer que essa conceptualização mais generalizada de fé que ele oferece tem algumas vantagens, a despeito de se prestar ao uso falacioso apontado acima.
Como o próprio autor reconhece, algo que seja o princípio organizador fundamental da vida e da personalidade de uma pessoa tem um forte potencial para também ser a chave de um enorme baú de atrocidades -- já que todas as demais considerações, como verdade, justiça e compaixão estão subordinados a esse princípio, que pode ser, por exemplo, o sucesso financeiro, a honra da família, etc.
Tillich então distingue entre fé -- o compromisso definitivo da vida -- e o objeto da fé -- a coisa com que a pessoa que tem fé está comprometida. Sendo um teólogo cristão, ele logo trata de estabelecer uma distinção entre o absoluto ("ultimate") -- que seria o objeto ideal da fé, e do qual Deus é um símbolo -- e os ídolos, os objetos inadequados, que incluem dinheiro, poder, nação, família e, mais importante, os símbolos do absoluto que passam a ser tomados pelo absoluto.
É esse último tipo de idolatria, diz ele, que leva ao fanatismo religioso, à violência religiosa, etc. É à tendência humana à idolatria, também, que ele atribui as tentativas de "usar o absoluto em proveito próprio, como nas práticas mágicas e preces". Nessa acepção, provavelmente 99,9% da cristandade é composta por idólatras.
Se você está esperando uma definição clara do "absoluto", não prenda a respiração. Ele é o amor, a justiça, a verdade; a fundação de todo o ser; aquilo de que fomos separados e a que ansiamos por retornar; a intuição do infinito; entre outras coisas. Pessoalmente, ao longo do texto, fiquei com a impressão de que, no fundo, se trata de mistura de medo da morte com nostalgia do útero.
Falando no texto: é uma leitura agradável e, com o perdão da palavra gasta, instigante. Tillich peca, a meu ver em dois pontos: ao cometer uma generalização injustificada, afirmando que nenhum ser humano pode viver por muito tempo sem uma grande preocupação central em sua vida -- ele nunca leu o Eclesiastes? -- e, também, por paroquialismo, ao afirmar que, de todas as formas organizadas de expressar essa preocupação -- "fé" -- o cristianismo protestante é a que menos risco oferece de descambar para a idolatria.
Enfim, se todos os cristãos fossem tillichianos, não teríamos uma bancada evangélica e nem o Vaticano estaria sabotando programas de planejamento familiar pelo mundo. A respeitabilidade intelectual da empreitada ainda seria altamente questionável, mas o mundo provavelmente seria um lugar melhor.
Digo o mesmo sobre o C. S. Lewis. Se o cristianismo fosse aquela coisa linda que ele descreve em "Mere Christianity" o mundo seria um lugar melhor.
ResponderExcluirMe gusta mucho lo tuyo.
ResponderExcluirLeo poco a poco
Gracias por dejar que torpes como yo aprendan.
Me puse como seguidor. Te espero como seguidor si así lo crees. Es más fácil encontrarse.
Un abrazo