Dilma, mariologia e o antropólogo de Marte

Só uma breve nota pré-carnavalesca: no rastro da gritaria histérica contra a ministra Eleonora Menicucci (detalhes na postagem, abaixo), alguns comentaristas "neocons" resolveram tirar umas casquinhas da presidente Dilma, que num programa do Datena, ainda quando candidata, referiu-se a Nossa Senhora como "deusa" e se declarou devota de Nossa Senhora "de uma forma geral".

Que a presidente merece ser trollada por isso, não tenho a menor dúvida. Primeiro, por condescender em jogar para  a galera desse jeito; segundo, por fazê-lo tão mal. Curiosamente, no entanto, a mariologia dilmística tem uma alta plausibilidade intuitiva e, mais do que isso, importantes precedentes históricos.

A questão de até que ponto o catolicismo pode ser considerado um sistema monoteísta, por exemplo, não é tão clara quanto os próprios católicos gostam de acreditar.

A crítica de que a devoção praticada pelos fiéis da Igreja Católica seria politeísta de facto (embora se declare monoteísta de jure), com a doutrina da Trindade, o culto dos santos e o papel especial dado a Maria, ganhou força a partir da Reforma Protestante, mas já existia lá nos tempos do Império Romano.

Uma das grandes polêmicas dos primeiros séculos de institucionalização do cristianismo foi se Jesus e Deus Pai seriam homoousios ("da mesma substância") ou homoiousios ("de substâncias semelhantes"). O veredicto pela primeira opção acabou abrindo novos vespeiros, a saber: seriam então dois deuses diferentes? Se eram um deus só, então isso quer dizer que Deus Pai, Criador do Universo, morreu na cruz? E faz sentido, portanto, chamar Maria de Mãe de Deus?

Se você acha que políticos e administradores de fundo de investimento são os maiorais na arte de sacrificar a lógica e o bom senso no altar da embromação por meio de linguagem rebuscada, tente ler um tratado de teologia medieval.

No século 5, a questão da "Mãe de Deus" chamou especial atenção da imperatriz Pulchéria, uma senhora muito estranha, que fizera voto de virgindade aos 15 anos e que só veio a se casar depois dos 60, e após obter do marido a promessa de que ele não tentaria nada na cama.

Pulchéria desenvolveu um interesse especial em ver Maria consagrada como "Mãe de Deus" -- em seu livro Jesus Wars: How Four Patriarchs, Three Queens, and Two Emperors Decided What Christians Would Believe for the Next 1,500 years, Philip Jenkins escreve que ela se identificava com a santa -- e basta dizer que, em meio a trocas de carta entre bispos, concílios e muita intriga palaciana, um bocado de sangue foi derramado antes que a doutrina oficial tomasse forma.

De acordo com ela, Pai, Filho e Espírito Santo são pessoas diferentes, mas um só Deus; o Pai gera o Filho, mas ambos existem desde sempre, e atuam por meio do Espírito; e Maria é Mãe de Deus, mas não do Pai, só do Filho, que a despeito disso, como dito acima, existe desde sempre; e não é uma deusa.

Claro que nada disso faz o menor sentido, mas aí teólogos chamam a coisa toda de "mistério", sutilmente ameaçam quem fizer troça com o fogo do inferno, e saem assoviando. Pondo os teólogos de lado por um momento, é interessante imaginar o que o proverbial antropólogo marciano, enviado à Terra para estudar nossas religiões, concluiria sobre o cristianismo tal como praticado no Brasil.

Meu palpite:

Ele veria a crença dividida em duas correntes, uma fortemente monoteísta, focada numa divindade chamada Senhor Jesus; e a outra, na qual esse Jesus, aparecendo sem o título de "Senhor", divide o panteão com um sem-número de deusas, chamadas Aparecida, Lourdes, Dores, Graças, Rosa Mística, etc., todas honradas com o título de Nossa Senhora, todas virgens e, num toque de especial sofisticação mitológica, todas mães do supracitado Jesus. Que é o que parece ser, mais ou menos, a mariologia brevemente descrita pela candidata Dilma.

Claro que as altas autoridades eclesiásticas e os comentaristas "neocons" em geral costumam torcer o nariz para a "grosseira" religiosidade popular -- exceto, obviamente, na hora de vender medalhinhas e de manipular eleitores.

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