A Paixão de Cristo, e de mais um monte de gente
Aviso: postagem longa, muito longa.
Confesso que gosto do filme de Mel Gibson. Só não comprei o DVD porque lá em casa ninguém ia querer assistir comigo. Há alguns trechos, principalmente a "lágrima de Deus" no final, e as mulheres esfregando o chão loucamente, que são bregas pra burro, mas no geral trata-se de um filme honesto, que lança um olhar firme sobre a capacidade humana de causar dor ao próximo -- e de fazê-lo sorrindo.
Abstraindo-se a informação de que o cara que está sendo espancado e crucificado na tela é, supostamente, o Filho de Deus, o que resta é uma denúncia do abuso de poder, do sadismo e da desumanidade.
Claro, abstrair o status de Filho de Deus do protagonista meio que vai contra a intenção do autor, mas ir contra o autor é um privilégio da audiência. Faça o exercício: tente ver o filme encarando o personagem de Jim Caviziel como um pobre caipira, meio iludido mas bem-intencionado, que foi passar o feriado na cidade grande, arrumou briga com a polícia e se estrepou.
E ao fazer esse exercício, aproveite para se perguntar, por que é a crucificação de Cristo que tanta comoção causou ao longo das eras? Se fosse Barrabás ali, as chicotadas, os pregos teriam doído menos? Pregar pessoas ainda vivas em pedaços de pau só não é O.K. se uma delas tiver um papai importante ou, talvez, uma equipe de assessores de imprensa capaz de produzir o Novo Testamento? Certo, até onde se sabe, Jesus era um bom sujeito que não merecia o que fizeram com ele. Mas terá sido o único? Improvável.
Porque o caso do Nazareno estava longe, bem longe, de ser ponto fora da curva. Para dar uma ideia da escala em que a cruz era usada como meio de execução por Roma, na Palestina: após sufocar uma revolta que havia eclodido mais ou menos na mesma época do nascimento de Jesus -- e liderada por um conterrâneo dele, um certo Judas Galileu -- o império decidiu deixar bem claro, a todas as partes interessadas, que manda quem pode, obedece quem tem juízo. Para tanto, crucificou 2.000 rebeldes em Jerusalém. Décadas mais tarde, em resposta a outro levante judeu, os romanos passaram a crucificar 500 pessoas ao dia, como tática de intimidação. Teriam essas vítimas sofrido menos que o "Filho do Homem"?
Sei que há todo o construto teológico em torno da ideia da vítima impoluta, do cordeiro sem nódoa, etc., mas a ideia de que um Deus onipotente estava impossibilitado de se relacionar com a humanidade sem receber, primeiro, um sacrifício injusto e sangrento sempre me pareceu abjeta -- no mínimo, trata-se de levar a velha tradição mediterrânea da vendetta, onde "a honra se lava com sangue" (e a honra do capo di tutti capi, só com sangue especial-extra-plus-luxo-omega-aditivado), um pouco longe demais. A lógica da redenção cristã encontra-se, no fim, muito próxima da lógica de Don Corleone.
Não que essa lógica seja necessariamente intrínseca a todas as formas concebíveis de cristianismo: em Q, the Earliest Gospel: An Introduction to the Original Stories and Sayings of Jesus, John S. Kloppenborg argumenta que algumas comunidades cristãs primitivas usavam "evangelhos de dizeres", isto é, tradições baseadas em coisas que Jesus teria dito e pregado, e não coisas que teria feito ou que teriam acontecido com ele. Para essas comunidades, histórias como o nascimento virgem, a morte na cruz e a ressurreição eram desconhecidas, ou irrelevantes.
Mas, voltando à película. Outra crítica muito usada contra o filme de Gibson é a de antissemitismo. Nesse caso, o que dá para dizer é que o autor apenas se manteve fiel a suas fontes.
Hoje em dia está na moda dizer que os Evangelhos canônicos põem a culpa pela morte de Jesus nas mãos dos romanos e que dois milênios de antissemitismo cristão nasceram de um lamentável mal-entendido. Mas, como dizem estudiosos tão diversos como Robert M. Price e Bart D. Ehrman, o que os textos fazem, se lidos sem as lentes da correção política e da conveniência histórica, é exatamente o oposto: Jesus, dizem as quatro versões da história supostamente inspiradas por Deus, foi morto pela mão de Roma, mas por obra e instigação direta dos judeus, elite e povo, que se encontravam em Jerusalém na Páscoa de um certo ano da terceira década EC.
É possível, no entanto, construir um forte caso defendendo a ideia de que a responsabilidade final foi mesmo romana, e que culpar os judeus não passou de uma manobra publicitária -- deliberada, sem "mal-entendido" nenhum no meio -- dos primeiros cristãos. Afinal, o que as fontes afirmam, abstraindo-se os detalhes picantes, é: Jesus foi crucificado, o que era um modo de execução romano; e isso, depois de condenado por um governador romano, Pôncio Pilatos.
Agora, se o Sinédrio -- conselho que era, ao mesmo tempo, a suprema corte e o parlamento de Jerusalém -- quisesse simplesmente sumir com Jesus, provavelmente poderia tê-lo condenado (sob falsos pretextos, até) por algum dos inúmeros crimes da lei mosaica que levam à pena capital, da blasfêmia à idolatria e à sodomia, e mandado apedrejá-lo até a morte.
Morte por lapidação, sem a necessidade de autorização ou intervenção romana, foi o destino, por exemplo, de Estêvão, considerado o primeiro mártir do cristianismo, e parecia ser o amargo fim reservado para a adúltera no Evangelho de João, antes que Jesus fosse chamado a intervir.
Há discussões sobre se nesses casos -- Estêvão e a adúltera -- o procedimento seria mais um linchamento do que uma execução judicial mas, de novo, se Jesus era tão desprezado pelos judeus de Jerusalém quanto os evangelistas sugerem (crucificá-lo, afinal, foi uma medida decidida, segundo os textos, por aclamação), linchá-lo não estaria realmente fora de questão.
E já que comecei a postagem falando em cinema, não custa nada lembrar que a aparente popularidade dos apedrejamentos como forma de entretenimento popular, na Jerusalém do primeiro século, foi genialmente satirizada no melhor filme bíblico de todos os tempos, A Vida de Brian.
Numa nota mais relevante, em seu livro The Passion: The True Story of an Event That Changed Human History, o respeitado historiador Geza Vermes apresenta várias provas arqueológicas que mostram que o Sinédrio no primeiro século EC tinha autonomia para decretar a pena de morte em casos de delitos de natureza religiosa, sem precisar apelar para o governador romano. Se esse era o caso, e se "os judeus" queriam mesmo de livrar de Jesus, então por que não o fizeram?
Portanto, a interpretação atual, de que a "culpa" final é de Roma -- mesmo supondo, como Vermes sustenta, que um grupo da elite nativa realmente atuou para chamara a atenção dos romanos para as "atividades subversivas" de Jesus -- faz todo o sentido.
Só que, eis o detalhe, essa interpretação era embaraçosa para os autores dos Evangelhos. No tempo em que os textos foram escritos, entre os anos 70 e 110 EC, após a revolta dos judeus contra Roma que levou à destruição do Templo de Jerusalém, era preciso mostrar aos romanos que o cristianismo era "manso", não representava uma ameaça de sedição e, para tanto, era conveniente distanciá-lo o máximo possível da matriz judaica.
Mas o fato de o culto cristão adorar, como divino, um judeu executado pelos romanos como traidor não representava, exatamente, um bom cartão de visitas. Daí, a saída encontrada: dar a entender que a execução tinha sido um erro -- que os "pérfidos judeus" haviam induzido o pobre Pilatos a fazer algo que não queria:
Então ele, pela terceira vez, [Pilatos] lhes disse: Mas que mal fez este? Não acho nele culpa alguma de morte. Castigá-lo-ei pois, e soltá-lo-ei./Mas eles instavam com grandes gritos, pedindo que fosse crucificado. E os seus gritos, e os dos principais dos sacerdotes, redobravam./Então Pilatos julgou que devia fazer o que eles pediam.
Ou, na versão de Mateus:
Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso./E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.
Essa visão de Pilatos, como um homem essencialmente justo, ainda que pusilânime, não combina com o retrato da história: intelectuais judeus da época, como Philo e Josefo, descrevem-no como um tipo tirânico e irascível.
Fast-forward, o que era um mero expediente de marketing político para apaziguar o império acabou gerando 2.000 anos de perseguições, incluindo o Holocausto -- e o filme de Mel Gibson.
Numa linha paralela, é interessante notar que ninguém menos que apóstolo Paulo negava peremptoriamente que Roma castigasse inocentes. Em sua epístola aos Romanos, diz:
Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela./Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal.
Em outras palavras, "a potestade", isto é, a autoridade civil constituída (no caso concreto do contexto da carta, o Império Romano) só pune quem merece. Como Paulo conciliava isso com a crucificação de Jesus nas mãos de Roma representa um paradoxo, no mínimo, curioso.
Por fim, é interessante investigar a questão de até que ponto as narrativas da paixão podem ser levadas a sério como história. Por exemplo, a versão de Marcos -- a mais antiga conhecida --, depende crucialmente, para estabelecer vários detalhes, do Salmo 22, onde há versos como este:
Pois me rodearam cães; o ajuntamento de malfeitores me cercou, traspassaram-me as mãos e os pés.
Que pode ter inspirado a cena da crucificação (com pregos nas mãos e nos pés) entre um par de ladrões; ou estes:
Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo:/Confiou no SENHOR, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.
Que bem podem ter inspirado a seguinte cena (repare, entre outras coisas, na repetição da expressão sobre "menear a cabeça"):
E os que passavam blasfemavam dele, meneando as suas cabeças, e dizendo: Ah! tu que derrubas o templo, e em três dias o edificas,/Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz./E da mesma maneira também os principais dos sacerdotes, com os escribas, diziam uns para os outros, zombando: Salvou os outros, e não pode salvar-se a si mesmo.
Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha roupa.
E, havendo-o crucificado, repartiram as suas vestes, lançando sobre elas sortes, para saber o que cada um levaria.
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
Confesso que gosto do filme de Mel Gibson. Só não comprei o DVD porque lá em casa ninguém ia querer assistir comigo. Há alguns trechos, principalmente a "lágrima de Deus" no final, e as mulheres esfregando o chão loucamente, que são bregas pra burro, mas no geral trata-se de um filme honesto, que lança um olhar firme sobre a capacidade humana de causar dor ao próximo -- e de fazê-lo sorrindo.
Abstraindo-se a informação de que o cara que está sendo espancado e crucificado na tela é, supostamente, o Filho de Deus, o que resta é uma denúncia do abuso de poder, do sadismo e da desumanidade.
Claro, abstrair o status de Filho de Deus do protagonista meio que vai contra a intenção do autor, mas ir contra o autor é um privilégio da audiência. Faça o exercício: tente ver o filme encarando o personagem de Jim Caviziel como um pobre caipira, meio iludido mas bem-intencionado, que foi passar o feriado na cidade grande, arrumou briga com a polícia e se estrepou.
E ao fazer esse exercício, aproveite para se perguntar, por que é a crucificação de Cristo que tanta comoção causou ao longo das eras? Se fosse Barrabás ali, as chicotadas, os pregos teriam doído menos? Pregar pessoas ainda vivas em pedaços de pau só não é O.K. se uma delas tiver um papai importante ou, talvez, uma equipe de assessores de imprensa capaz de produzir o Novo Testamento? Certo, até onde se sabe, Jesus era um bom sujeito que não merecia o que fizeram com ele. Mas terá sido o único? Improvável.
Capo di tutti capi
Porque o caso do Nazareno estava longe, bem longe, de ser ponto fora da curva. Para dar uma ideia da escala em que a cruz era usada como meio de execução por Roma, na Palestina: após sufocar uma revolta que havia eclodido mais ou menos na mesma época do nascimento de Jesus -- e liderada por um conterrâneo dele, um certo Judas Galileu -- o império decidiu deixar bem claro, a todas as partes interessadas, que manda quem pode, obedece quem tem juízo. Para tanto, crucificou 2.000 rebeldes em Jerusalém. Décadas mais tarde, em resposta a outro levante judeu, os romanos passaram a crucificar 500 pessoas ao dia, como tática de intimidação. Teriam essas vítimas sofrido menos que o "Filho do Homem"?
Sei que há todo o construto teológico em torno da ideia da vítima impoluta, do cordeiro sem nódoa, etc., mas a ideia de que um Deus onipotente estava impossibilitado de se relacionar com a humanidade sem receber, primeiro, um sacrifício injusto e sangrento sempre me pareceu abjeta -- no mínimo, trata-se de levar a velha tradição mediterrânea da vendetta, onde "a honra se lava com sangue" (e a honra do capo di tutti capi, só com sangue especial-extra-plus-luxo-omega-aditivado), um pouco longe demais. A lógica da redenção cristã encontra-se, no fim, muito próxima da lógica de Don Corleone.
Não que essa lógica seja necessariamente intrínseca a todas as formas concebíveis de cristianismo: em Q, the Earliest Gospel: An Introduction to the Original Stories and Sayings of Jesus, John S. Kloppenborg argumenta que algumas comunidades cristãs primitivas usavam "evangelhos de dizeres", isto é, tradições baseadas em coisas que Jesus teria dito e pregado, e não coisas que teria feito ou que teriam acontecido com ele. Para essas comunidades, histórias como o nascimento virgem, a morte na cruz e a ressurreição eram desconhecidas, ou irrelevantes.
'Pérfidos judeus'
Mas, voltando à película. Outra crítica muito usada contra o filme de Gibson é a de antissemitismo. Nesse caso, o que dá para dizer é que o autor apenas se manteve fiel a suas fontes.
Hoje em dia está na moda dizer que os Evangelhos canônicos põem a culpa pela morte de Jesus nas mãos dos romanos e que dois milênios de antissemitismo cristão nasceram de um lamentável mal-entendido. Mas, como dizem estudiosos tão diversos como Robert M. Price e Bart D. Ehrman, o que os textos fazem, se lidos sem as lentes da correção política e da conveniência histórica, é exatamente o oposto: Jesus, dizem as quatro versões da história supostamente inspiradas por Deus, foi morto pela mão de Roma, mas por obra e instigação direta dos judeus, elite e povo, que se encontravam em Jerusalém na Páscoa de um certo ano da terceira década EC.
É possível, no entanto, construir um forte caso defendendo a ideia de que a responsabilidade final foi mesmo romana, e que culpar os judeus não passou de uma manobra publicitária -- deliberada, sem "mal-entendido" nenhum no meio -- dos primeiros cristãos. Afinal, o que as fontes afirmam, abstraindo-se os detalhes picantes, é: Jesus foi crucificado, o que era um modo de execução romano; e isso, depois de condenado por um governador romano, Pôncio Pilatos.
Agora, se o Sinédrio -- conselho que era, ao mesmo tempo, a suprema corte e o parlamento de Jerusalém -- quisesse simplesmente sumir com Jesus, provavelmente poderia tê-lo condenado (sob falsos pretextos, até) por algum dos inúmeros crimes da lei mosaica que levam à pena capital, da blasfêmia à idolatria e à sodomia, e mandado apedrejá-lo até a morte.
Morte por lapidação, sem a necessidade de autorização ou intervenção romana, foi o destino, por exemplo, de Estêvão, considerado o primeiro mártir do cristianismo, e parecia ser o amargo fim reservado para a adúltera no Evangelho de João, antes que Jesus fosse chamado a intervir.
Há discussões sobre se nesses casos -- Estêvão e a adúltera -- o procedimento seria mais um linchamento do que uma execução judicial mas, de novo, se Jesus era tão desprezado pelos judeus de Jerusalém quanto os evangelistas sugerem (crucificá-lo, afinal, foi uma medida decidida, segundo os textos, por aclamação), linchá-lo não estaria realmente fora de questão.
E já que comecei a postagem falando em cinema, não custa nada lembrar que a aparente popularidade dos apedrejamentos como forma de entretenimento popular, na Jerusalém do primeiro século, foi genialmente satirizada no melhor filme bíblico de todos os tempos, A Vida de Brian.
Numa nota mais relevante, em seu livro The Passion: The True Story of an Event That Changed Human History, o respeitado historiador Geza Vermes apresenta várias provas arqueológicas que mostram que o Sinédrio no primeiro século EC tinha autonomia para decretar a pena de morte em casos de delitos de natureza religiosa, sem precisar apelar para o governador romano. Se esse era o caso, e se "os judeus" queriam mesmo de livrar de Jesus, então por que não o fizeram?
Portanto, a interpretação atual, de que a "culpa" final é de Roma -- mesmo supondo, como Vermes sustenta, que um grupo da elite nativa realmente atuou para chamara a atenção dos romanos para as "atividades subversivas" de Jesus -- faz todo o sentido.
Só que, eis o detalhe, essa interpretação era embaraçosa para os autores dos Evangelhos. No tempo em que os textos foram escritos, entre os anos 70 e 110 EC, após a revolta dos judeus contra Roma que levou à destruição do Templo de Jerusalém, era preciso mostrar aos romanos que o cristianismo era "manso", não representava uma ameaça de sedição e, para tanto, era conveniente distanciá-lo o máximo possível da matriz judaica.
Mas o fato de o culto cristão adorar, como divino, um judeu executado pelos romanos como traidor não representava, exatamente, um bom cartão de visitas. Daí, a saída encontrada: dar a entender que a execução tinha sido um erro -- que os "pérfidos judeus" haviam induzido o pobre Pilatos a fazer algo que não queria:
Então ele, pela terceira vez, [Pilatos] lhes disse: Mas que mal fez este? Não acho nele culpa alguma de morte. Castigá-lo-ei pois, e soltá-lo-ei./Mas eles instavam com grandes gritos, pedindo que fosse crucificado. E os seus gritos, e os dos principais dos sacerdotes, redobravam./Então Pilatos julgou que devia fazer o que eles pediam.
Lucas 23:22-24
Ou, na versão de Mateus:
Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso./E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.
Mateus 27:24-25
Essa visão de Pilatos, como um homem essencialmente justo, ainda que pusilânime, não combina com o retrato da história: intelectuais judeus da época, como Philo e Josefo, descrevem-no como um tipo tirânico e irascível.
Fast-forward, o que era um mero expediente de marketing político para apaziguar o império acabou gerando 2.000 anos de perseguições, incluindo o Holocausto -- e o filme de Mel Gibson.
Numa linha paralela, é interessante notar que ninguém menos que apóstolo Paulo negava peremptoriamente que Roma castigasse inocentes. Em sua epístola aos Romanos, diz:
Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela./Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal.
Romanos 13:3-4
Em outras palavras, "a potestade", isto é, a autoridade civil constituída (no caso concreto do contexto da carta, o Império Romano) só pune quem merece. Como Paulo conciliava isso com a crucificação de Jesus nas mãos de Roma representa um paradoxo, no mínimo, curioso.
Salmo 22
Por fim, é interessante investigar a questão de até que ponto as narrativas da paixão podem ser levadas a sério como história. Por exemplo, a versão de Marcos -- a mais antiga conhecida --, depende crucialmente, para estabelecer vários detalhes, do Salmo 22, onde há versos como este:
Pois me rodearam cães; o ajuntamento de malfeitores me cercou, traspassaram-me as mãos e os pés.
Salmos 22:16
Que pode ter inspirado a cena da crucificação (com pregos nas mãos e nos pés) entre um par de ladrões; ou estes:
Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo:/Confiou no SENHOR, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.
Salmo 22:7-8
Que bem podem ter inspirado a seguinte cena (repare, entre outras coisas, na repetição da expressão sobre "menear a cabeça"):
E os que passavam blasfemavam dele, meneando as suas cabeças, e dizendo: Ah! tu que derrubas o templo, e em três dias o edificas,/Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz./E da mesma maneira também os principais dos sacerdotes, com os escribas, diziam uns para os outros, zombando: Salvou os outros, e não pode salvar-se a si mesmo.
Marcos 15:29-31
Ou ainda este verso:
Salmo 22:18
Que, muito provavelmente, representa a inspiração da cena, abaixo, que está na base do filme O Manto Sagrado, épico bíblico estrelado por Richard Burton e primeira produção em Cinemascope da história:
Marcos 15:24
Além disso, claro, há as últimas palavras de Jesus, idênticas ao primeiro verso do Salmo 22:
Salmo 22:1/Marcos 15:34
Apologistas tratam a semelhança entre o salmo e a narrativa de Marcos como uma profecia ou prefiguração -- afinal, para eles, Jesus viveu e morreu "de acordo com as escrituras", certo? -- mas há pelo menos uma alternativa: o autor do Evangelho precisava contar uma história de crucificação, não tinha lá muitos detalhes a oferecer além de algumas noções básicas e, por isso, foi às escrituras judaicas em busca de referências para pôr um pouco de "carne" no esqueleto narrativo que tinha em mãos. Porque, oras, se Jesus teria vivido e morrido "segundo as escrituras", qual o melhor lugar para procurar os detalhes que estavam faltando?
Ou uma opção ainda mais radical: foi o salmo, com sua referência a mãos e pés trespassados, que sugeriu ao autor de Marcos a ideia da crucificação -- o que faria do episódio todo uma obra 100% ficcional. Esta é, em linhas gerais, a visão de Robert Price.
Ou uma opção ainda mais radical: foi o salmo, com sua referência a mãos e pés trespassados, que sugeriu ao autor de Marcos a ideia da crucificação -- o que faria do episódio todo uma obra 100% ficcional. Esta é, em linhas gerais, a visão de Robert Price.
Ah, um momento: preciso avisar que Price faz parte de uma minoria mínima de estudiosos que defende que não é possível inferir nada a respeito dos fatos da vida (ou da morte) do Jesus histórico a partir dos Evangelhos -- para ele, os textos encontram-se tão contaminados por teologia, alegoria e mitologia que nada resta de informação confiável.
Ele chega a afirmar que é mais provável que jamais tenha havido um Jesus histórico, e que os Evangelhos não passam de uma colcha de retalhos de versículos do Velho Testamento e dos poemas de Homero, amarrados dentro da estrutura de um mito de morte-e-ressurreição, como o de Adônis.
Esta não é, no entanto, uma visão muito bem aceita entre os historiadores: o consenso atual é o de que há evidência histórica suficiente para afirmar que houve um certo pregador religioso galileu chamado Jesus que foi crucificado em Jerusalém por volta do ano 30. Para uma crítica detalhada da polêmica "Teoria do Cristo Mítico", há um livro recente de Bart Ehrman, Did Jesus Exist?: The Historical Argument for Jesus of Nazareth.
A provável existência histórica de um pregador galileu chamado Jesus que acabou morrendo na cruz não elimina, no entanto, a também provável contaminação de sua história por motivos mitológicos. Em seu livro What is a Gospel?, Charles H. Talbert argumenta que os Evangelhos sinópticos (Marcos, Lucas e Mateus) são "controlados" pelo mito do "homem divino", geralmente um semideus que, depois de uma vida de serviços prestados à humanidade ignara, morre e ascende à divindade plena. O caso clássico é o de Héracles -- que não expulsava demônios, mas matava monstros, o que não deixava de ser um tipo de serviço público.
Ele chega a afirmar que é mais provável que jamais tenha havido um Jesus histórico, e que os Evangelhos não passam de uma colcha de retalhos de versículos do Velho Testamento e dos poemas de Homero, amarrados dentro da estrutura de um mito de morte-e-ressurreição, como o de Adônis.
Esta não é, no entanto, uma visão muito bem aceita entre os historiadores: o consenso atual é o de que há evidência histórica suficiente para afirmar que houve um certo pregador religioso galileu chamado Jesus que foi crucificado em Jerusalém por volta do ano 30. Para uma crítica detalhada da polêmica "Teoria do Cristo Mítico", há um livro recente de Bart Ehrman, Did Jesus Exist?: The Historical Argument for Jesus of Nazareth.
A provável existência histórica de um pregador galileu chamado Jesus que acabou morrendo na cruz não elimina, no entanto, a também provável contaminação de sua história por motivos mitológicos. Em seu livro What is a Gospel?, Charles H. Talbert argumenta que os Evangelhos sinópticos (Marcos, Lucas e Mateus) são "controlados" pelo mito do "homem divino", geralmente um semideus que, depois de uma vida de serviços prestados à humanidade ignara, morre e ascende à divindade plena. O caso clássico é o de Héracles -- que não expulsava demônios, mas matava monstros, o que não deixava de ser um tipo de serviço público.
Ah, sim: é bom lembrar que, embora a maioria dos demais estudiosos que se debruçam sobre a questão das raízes do cristianismo discorde das ideias radicais de Price, ele próprio tem prazer em apontar, em seu livro Deconstructing Jesus, que os membros dessa mesma maioria discordam veementemente entre si sobre qual, enfim, seria a extensão e o conteúdo da "informação confiável" disponível a respeito desse tal de "Jesus histórico".
Segundo Geza Vermes, pode-se argumentar que "o único fato estabelecido" a respeito de Jesus é a terrível e cruel morte na cruz -- idêntica à de milhares e milhares de outros miseráveis, anônimos e perdidos nas areias do tempo.
Segundo Geza Vermes, pode-se argumentar que "o único fato estabelecido" a respeito de Jesus é a terrível e cruel morte na cruz -- idêntica à de milhares e milhares de outros miseráveis, anônimos e perdidos nas areias do tempo.
Ufa, longo e profundo. Quando digo que não sei escrever encontro a pérola mais linda. Obrigado por entrar em minha vida nessa manhã.
ResponderExcluirCristo Jesus tenha piedade de mim por eu ser fruto do pecado e estar a continuar a pecar contra de meu Deus . nesta pascoa eu seja um outra Homem
ResponderExcluirCarlos,
ResponderExcluirontem um grande jornal do ES publicou esta matéria onde afirma, sem mostrar fontes, que alguns estudos mostram que a fé ajuda a curar doenças. Estes estudos existem mesmo?
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/04/noticias/a_gazeta/dia_a_dia/1183397-a-fe-do-dia-a-dia-move-mesmo-montanhas.html
Oi, Evandro! Há três respostas para isso. Começando pela mais curta: leia o meu livro! ;-D
ExcluirA segunda, que é a mais longa: existem inúmeros estudos, de fato, mas tanto a qualidade deles quanto o nível de confiança nos resultados varia bastante.
O resíduo de estudos que são considerados bem feitos, bem elaborados e claros em suas conclusões não apontam nenhum benefício que possa ser atribuído diretamente à fé em si, mas a fatores circunstanciais (por exemplo, uma pessoa que é membro de uma comunidade religiosa unida tem os benefícios de ser membro da comunidade -- o que pode incluir apoio nos momentos difíceis, amizade, compreensão -- que muitas vezes são encarados como benefícios "da fé", embora não o sejam).
Terceira: a reportagem da Gazeta usa a expressão "fé" de um modo muito amplo, incluindo até mesmo "fé em si mesmo". Se você ler a matéria, vai ver que o que ela diz, no fim, é que ter amigos, ser autoconfiante e manter a calma faz bem. A fé entra como uma espécie de fenômeno sociológico/psicológico que facilita essas coisas, não como uma "coisa em si".
"Faça o exercício: tente ver o filme encarando o personagem de Jim Caviziel como um pobre caipira, meio iludido mas bem-intencionado, que foi passar o feriado na cidade grande, arrumou briga com a polícia e se estrepou."<=E teremos algo como O Pagador de Promessas + Rambo.
ResponderExcluir[]s,
Roberto Takata