Quem tem medo da eugenia?
"Eugenia" é, por longa tradição histórica, uma palavra suja. A simples menção traz à mente imagens de clínicas nazistas onde eram exterminados portadores de diversos tipo de deficiência, ou políticas de Estado , adotadas em vários países em diversos momentos, proibindo a miscigenação de raças ou determinando a esterilização de parcelas da população. Tudo muito desumano e assustador.
Ou, ainda, faz pensar em filmes como Gattaca, onde os ricos têm acesso a genes de primeira linha para seus filhos, e as pessoas são continuamente submetidas a testes genéticos para avaliar suas aptidões. De novo, tudo muito desumano e assustador.
Mas, será esse o único modo de encarar a questão? Um exemplo ficcional: em sua série de romances sobre o imortal Lazarus Long, o escritor de ficção científica Robert Heinlein imagina a figura de um milionário que paga para que pessoas de famílias especialmente longevas tenham filhos entre si, ao longo de várias gerações. Seu objetivo é, exatamente, testar os limites genéticos da vida humana.
Heinlein deixa bem claro que todo o processo é estritamente voluntário, não envolvendo nenhum tipo de coerção por parte do Estado. Como todo bom escritor de ficção especulativa, o autor nos deixa com a batata quente das implicações éticas, legais e morais da iniciativa nas mãos. Em que o experimento difere, por exemplo, de uma série de casamentos arranjados por dinheiro?
Trazendo o debate para uma arena mais próxima do mundo real, o especialista em ética médica James Hughes defende, em seu livro Citizen Cyborg: Why Democratic Societies Must Respond To The Redesigned Human Of The Future, que uma vez eliminados (se possível, claro) os dois espectros que assombram os pesadelos eugênicos -- o autoritarismo estatal, à la esterilização em massa, e o elitismo plutocrata, à la Gattaca -- então o processo em si, a seleção consciente da composição genética da próxima geração, torna-se não só permissível mas, praticamente, um dever moral.
Hughes constrói o argumento ponderando que os pais sempre tiveram o poder de escolher, dentro de limites impostos pela sociedade, o que consideram melhor para os filhos: que roupas vestir, que religião adotar, que escola cursar. Mesmo os genes sempre eram, de certa forma, escolhidos -- na seleção do parceiro. Agora que a escolha genética intuitiva (pela atração sexual) pode ser substituída pela científica, no tubo de ensaio, por que proibi-la?
Um contra-argumento é o de que uma pessoa pode mudar de religião ou fugir da escola, mas que ela não tem como escapar dos próprios genes. Mas isso seria, obviamente, verdade de qualquer jeito. O limite que Hughes propõe para o poder discricionário dos pais é uma espécie de versão genética do conceito de "abandono educacional": não se poderia reduzir os poderes e potencialidades da criança artificialmente (deliberadamente gerando, por exemplo, um bebê cego ou surdo), da mesma forma que não se pode manter uma criança deliberadamente analfabeta.
O autor leva o paralelo entre genética e educação adiante, pressionando em direção à conclusão de que a escolha, no fim, não é entre um método natural e um método artificial, mas entre deixar a formação da criança ao sabor do acaso (o que ele compara a deixar o filho na rua) ou da ciência (mandá-la para uma boa escola).
Pessoas com uma visão providencial do mundo podem questionar o uso de "acaso" -- nessa visão, o filho seria aquele que "Deus manda" -- mas essa é apenas uma ideologia particular. Uma objeção mais importante é de que até ponto a ciência já é capaz de funcionar melhor que o acaso, ao menos nesse tipo de situação. Em princípio, uma decisão informada pela melhor ciência disponível é superior a, e certamente mais responsável que, o resultado de um lance de dados, mas é necessário ver se o princípio se aplica ao caso.
De qualquer modo, ficam a questões: e se o princípio funcionar aí também? Abrir mão do acaso na reprodução humana será um crime? E se for, contra quem?
Ou, ainda, faz pensar em filmes como Gattaca, onde os ricos têm acesso a genes de primeira linha para seus filhos, e as pessoas são continuamente submetidas a testes genéticos para avaliar suas aptidões. De novo, tudo muito desumano e assustador.
Mas, será esse o único modo de encarar a questão? Um exemplo ficcional: em sua série de romances sobre o imortal Lazarus Long, o escritor de ficção científica Robert Heinlein imagina a figura de um milionário que paga para que pessoas de famílias especialmente longevas tenham filhos entre si, ao longo de várias gerações. Seu objetivo é, exatamente, testar os limites genéticos da vida humana.
Heinlein deixa bem claro que todo o processo é estritamente voluntário, não envolvendo nenhum tipo de coerção por parte do Estado. Como todo bom escritor de ficção especulativa, o autor nos deixa com a batata quente das implicações éticas, legais e morais da iniciativa nas mãos. Em que o experimento difere, por exemplo, de uma série de casamentos arranjados por dinheiro?
Trazendo o debate para uma arena mais próxima do mundo real, o especialista em ética médica James Hughes defende, em seu livro Citizen Cyborg: Why Democratic Societies Must Respond To The Redesigned Human Of The Future, que uma vez eliminados (se possível, claro) os dois espectros que assombram os pesadelos eugênicos -- o autoritarismo estatal, à la esterilização em massa, e o elitismo plutocrata, à la Gattaca -- então o processo em si, a seleção consciente da composição genética da próxima geração, torna-se não só permissível mas, praticamente, um dever moral.
Hughes constrói o argumento ponderando que os pais sempre tiveram o poder de escolher, dentro de limites impostos pela sociedade, o que consideram melhor para os filhos: que roupas vestir, que religião adotar, que escola cursar. Mesmo os genes sempre eram, de certa forma, escolhidos -- na seleção do parceiro. Agora que a escolha genética intuitiva (pela atração sexual) pode ser substituída pela científica, no tubo de ensaio, por que proibi-la?
Um contra-argumento é o de que uma pessoa pode mudar de religião ou fugir da escola, mas que ela não tem como escapar dos próprios genes. Mas isso seria, obviamente, verdade de qualquer jeito. O limite que Hughes propõe para o poder discricionário dos pais é uma espécie de versão genética do conceito de "abandono educacional": não se poderia reduzir os poderes e potencialidades da criança artificialmente (deliberadamente gerando, por exemplo, um bebê cego ou surdo), da mesma forma que não se pode manter uma criança deliberadamente analfabeta.
O autor leva o paralelo entre genética e educação adiante, pressionando em direção à conclusão de que a escolha, no fim, não é entre um método natural e um método artificial, mas entre deixar a formação da criança ao sabor do acaso (o que ele compara a deixar o filho na rua) ou da ciência (mandá-la para uma boa escola).
Pessoas com uma visão providencial do mundo podem questionar o uso de "acaso" -- nessa visão, o filho seria aquele que "Deus manda" -- mas essa é apenas uma ideologia particular. Uma objeção mais importante é de que até ponto a ciência já é capaz de funcionar melhor que o acaso, ao menos nesse tipo de situação. Em princípio, uma decisão informada pela melhor ciência disponível é superior a, e certamente mais responsável que, o resultado de um lance de dados, mas é necessário ver se o princípio se aplica ao caso.
De qualquer modo, ficam a questões: e se o princípio funcionar aí também? Abrir mão do acaso na reprodução humana será um crime? E se for, contra quem?
Mas há que se perguntar onde está o acaso na reprodução humana. Será que cada um sorteia o parceiro pelo número de CPF? Isto seria reprodução ao acaso. A partir do momento que é possível escolher pelo físico, dinheiro ou status (pela atração ou amor, que seja), a decisão já deixa de ser ao acaso. Sem contar que existem evidências de que os humanos são capazes de sentir atração por parceiros com padrão de imunidade diferente do seu, o que auxilia em uma prole com maior variabilidade de "agentes de defesa" e, consequentemente, mais aptos à vida. Somos programados para sermos eugênicos.
ResponderExcluirSeria um tipo de aconselhamento genético?
ResponderExcluir[]s,
Roberto Takata
Acho que o ponto do Hughes é mais amplo, indo mesmo em defesa dos "designer babies": vc quer uma filha de pele escura, olhos verdes, que tenha ouvido absoluto e estrutura óssea de bailarina? Se for (a) tecnologicamente viável e (b) esse tipo de seleção estiver aberto ao público (for um serviço do SUS, digamos), tá (ou estará, ou estaria) liberado.
ExcluirOutro dia assistindo um desses programas do Discovery com aquele nipo-americano que esqueci o nome agora, alguém falou algo em que eu ainda não tinha pensado, no que diz respeito à eugenia, que é o fato de que já fazemos isso socialmente: não só na escolha de parceiros (e essa escolha já foi muito estrita no passado: "fulano não minha filha, ele tem um tio maluco, e o avô era doido também..."), mas no modo como criamos os filhos, quando damos a eles todo o tipo de vantagem que pudermos bancar: as melhores escolas, cursos de linguas, viagens de intercâmbio, etc. Então escolher "genes melhores", moralmente falando não foge muito disso.
ResponderExcluirAgora o problema é se nós (que estamos na parada há meros 200 mil anos) conseguimos ser mais espertos que a evolução, queestá aí há 3,8 bilhões de anos...
O outro claro, decorre do fato de que vivemos numa sociedade capitalista, extremamente desigual.
Talvez o grande medo seja que a criação de uma nova aristocracia genética, em que os filhos "programados" de quem tiver dinheiro serão mais altos, mais fortes e mais rápidos (para evocar um ideal clássico) do que os filhos dos mais pobres. Daí que teriam ainda mais vantagens que o usual.
ResponderExcluir-Daniel Bezerra
Mas aí é que está: os ricos já têm um monte de vantagens, mesmo (melhores escolas, melhores médicos...). O que o governo faz (ou finge tentar fazer) é equalizar as coisas por meio do SUS, do ensino público. Então, se a questão é de igualdade social e não de Síndrome de Frankenstein, a "eugenia voluntária" não teria de ser proibida, mas sim parte da política de saúde pública, como vasectomia ou mudança de sexo.
ExcluirClaro, há alguns horrores possíveis nesse cenário (uma geração inteira de meninas clonadas da atriz da novela das 8, digamos), mas se é isso que as mães querem, qual a justificativa moral para impedi-las?
E enquanto isso os chineses praticam eugenia "positiva" abertamente:
ResponderExcluirhttp://scienceblogs.com.br/100nexos/2010/08/basquete_yao_ming_e_a_eugenia/