Religião faz mal para as mulheres?

É bastante comum encontrar na mídia reportagens e notas a respeito dos benefícios da religião para a saúde -- como ter fé, esperança, acreditar numa "força maior", etc., ajuda a superar problemas tanto físicos quanto emocionais. Semana sim, semana não, alguma revista (feminina ou, até, de interesse geral) toca no assunto. Mas pouca gente parece disposta a investigar a hipótese contrária: e se a religião fizer mal para a saúde?

Há poucos dias, foram divulgados dados sobre a expectativa de vida nos Estados Unidos, quebrados por condado (conceito próximo ao de "município", na estrutura administrativa do Brasil). Um dos resultados surpreendentes da pesquisa foi o de que, em algumas partes dos EUA, a expectativa de vida das mulheres na verdade regrediu ao longo dos últimos 20 anos. Como diz o texto que anuncia a divulgação do estudo, em algumas partes dos EUA as meninas nascidas em 2009 devem ter vidas mais curtas que as de suas mães.

O curioso nisso é que as regiões onde a expectativa de vida feminina caiu ficam dentro do chamado Bible Belt, a região do sudeste americano onde o cristianismo, especialmente o fundamentalista, prevalece. Abaixo, um mapa, tirado da Wikipedia, com o contorno geral do "Cinturão Bíblico":


E, aqui, um mapa com a distribuição da expectativa de vida feminina entre os condados americanos em 2009:


A sobreposição da "mancha da morte prematura" com a do Belt não é exatamente perfeita, claro, mas não deixa de ser sugestivo que as regiões mais críticas estejam todas contidas nele. Uma outra comparação interessante é com o mapa da gravidez na adolescência:



Onde quatro dos cinco Estados onde a situação é crítica encontram-se dentro do Belt. Um desses Estados críticos para gravidez juvenil é o Missouri, Mississippi, o mais religioso dos EUA, de acordo com pesquisa Gallup realizada em 2009. O mesmo Estado não aparece muito bem na pesquisa sobre expectativa de vida feminina. 

De acordo com o estudo da longevidade das mulheres, o retrocesso, nesse caso,correu em 84% dos condados de Oklahoma, 58% dos do Tennessee e 33% dos da Georgia. Os três encontram-se no Bible Belt e um deles, Oklahoma, também tem uma situação crítica de gravidez na adolescência.

O mapa abaixo é de uma pesquisa Pew onde as pessoas responderam à pergunta: O quanto a religião é importante na sua vida?



Dá para notar que há um núcleo de Estados, centrado no Missouri   Mississippi, mas envolvendo também Arkansas, Louisiana, Tennessee a Alabama, onde a resposta "muito importante" foi dada por mais de 71% dos entrevistados. Esse mesmo núcleo inclui boa parte dos condados onde a expectativa de vida das mulheres é menor e seus Estados estão entre aqueles onde os números de gravidez na adolescência vão de graves a críticos.

Não creio que seja polêmico afirmar que a correlação entre os três fatores -- fervor cristão, alta taxa de adolescentes grávidas e baixa expectativa de vida feminina -- é notável. É bem possível que haja um fator social envolvido, já que pobreza leva ao desespero e o desespero (geralmente) leva à religião. O mapa abaixo descreve o PIB de cada um dos Estados dos EUA, em 2008, onde os mais escuros são os mais ricos:


Dá para ver que os Estados mais pobres do país estão todos fora do Bible Belt e o Texas e a Georgia, entre os de PIB mais elevado, estão dentro. A Georgia, aliás, é um dos Estados onde a gravidez de adolescentes é um problema grave, e onde a expectativa de vida feminina teve retrocesso notável, atingindo um terço dos condados.

É apenas justo notar que essas comparações todas não provam que o fervor cristão é antagônico à saúde da mulher -- a análise não é sofisticada o bastante para permitir afirmar algo assim -- mas as repetidas coincidências geográficas não deixam de ser sugestivas. Só não prenda a respiração esperando alguma revista feminina seguir a sugestão.

Comentários

  1. Muito interessante sua análise.
    Uma vez fiz um trabalho sobre a relação entre a taxa de natalidade e o IDH, e no geral ele era inversamente proporcional, com rarissimas exceções.
    Certamente o acesso aos direitos reprodutivos por parte das mulheres aumenta a qualidade de vida não só das mulheres, mas como da sociedade como um todo.

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  2. Uma análise muito semelhante se encontra no livro no livro - "Carta a uma nação cristã" de Sam Harris.

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  3. hmmm... isso me cheira a "correlação x causação"

    se em um bairro mais pobre existe uma força policial maior (por causa da criminalidade), isso significa que o policiamento causa a pobreza?

    além disso, a própria bíblia diz em essência: "procura o médico quem está doente"

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  4. Apesar de ser ateu e crer no poder negativo de uma vida regada a religião, sou sanitarista e acho que os dados devem ser vistos com cuidado, estudos ecológicos são bons para gerar hipóteses, não para afirmar nada, nem criar teorias...

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  5. Olá,

    Acredito ter havido uma confusão entre os estados de Mississipi, ms, ao Sul e de missouri, mo, mais ao norte.

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  6. Acho que alguns que comentarem têm algum problema de interpretação de texto, visto que o autor foi muito feliz e dizer serem sugestivos os achados, e não conclusivos.

    No mais, vendo o mapa de escravidão (séc. XIX), racismo (séc. XX) e agora estes achados de religião, gravidez na adolescência e expectativa de vida, é NO MÍNIMO, curiosa tamanhas coincidências.

    Parabéns pelo texto (cheguei aqui através de um bate papo no Facebook do Eli Vieira).

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