Não quero ser Guimarães Rosa. Sou escritor?
Não sou muito de filosofar sobre literatura. Minha impressão é a de que escrever (e ler) ficção é meio como fazer sexo -- um negócio privado onde as únicas coisas realmente importantes são o caráter consensual e a satisfação mútua. Sempre que vejo alguém teorizando sobre se o escritor deve "procurar o público" ou "buscar a academia", se o importante é "contar uma boa história" ou "debruçar-se sobre a materialidade da linguagem", a coisa toda me parece tão estéril quanto um debate sobre o que é melhor, papai-mamãe ou coito anal. Cada um faz o que gosta, ora bolas, e embora sugestões de fora possam, eventualmente, até indicar possibilidades interessantes, é no mínimo patético esperar que tenham algum tipo de caráter normativo.
O parágrafo acima é um disclaimer para o fato de que agora vou, contrariando meus instintos mais profundos, filosofar sobre literatura. Mais precisamente, filosofar em torno da questão de por que a maioria das definições consensuais de literatura que flutuam no senso comum brasileiro não me leva em consideração -- não só a mim, mas a muita gente bem melhor, e/ou mais bem-sucedida que eu -- como produtor de literatura.
O caso imediato que apresento é esta resenha do romance O Erro de Glover, de Nick Laird, escrita para o site cultural Amálgama pelo escritor gaúcho Rafael Bán Jacobsen. Nela, encontrei o seguinte trecho:
"De fato, hoje, em nosso país, não há escritor (ou candidato a escritor) que deseje, antes de mais nada, contar uma boa história e/ou entreter o seu leitor; todos parecem muito mais preocupados em revolucionar a literatura, em soar genial, em ser a nova Clarice Lispector ou o novo Guimarães Rosa."
"O profissional liberal que tem dinheiro para comprar um best-seller internacional não compra de um autor brasileiro. É um preconceito que talvez até se justifique. (...) Porque os editores, talvez influenciados pelos departamentos de Letras das universidades, passaram a publicar, principalmente, autores brasileiros extremamente "difíceis". Ao mesmo tempo, pegue o Philip Roth, Complô Contra a América. Eu achei bom, mas, se fosse publicado no Brasil, não dariam bola. Porque não se trata de um livro de grandes experimentações linguísticas. Aqui, a tendência da crítica seria não levá-lo muito em conta."
O parágrafo acima é um disclaimer para o fato de que agora vou, contrariando meus instintos mais profundos, filosofar sobre literatura. Mais precisamente, filosofar em torno da questão de por que a maioria das definições consensuais de literatura que flutuam no senso comum brasileiro não me leva em consideração -- não só a mim, mas a muita gente bem melhor, e/ou mais bem-sucedida que eu -- como produtor de literatura.
O caso imediato que apresento é esta resenha do romance O Erro de Glover, de Nick Laird, escrita para o site cultural Amálgama pelo escritor gaúcho Rafael Bán Jacobsen. Nela, encontrei o seguinte trecho:
"De fato, hoje, em nosso país, não há escritor (ou candidato a escritor) que deseje, antes de mais nada, contar uma boa história e/ou entreter o seu leitor; todos parecem muito mais preocupados em revolucionar a literatura, em soar genial, em ser a nova Clarice Lispector ou o novo Guimarães Rosa."
Vamos lá. Publiquei minha primeira peça de ficção profissional (isto é, pela qual recebi uma quantia de dinheiro bastante para bancar um jantar num restaurante decente) em novembro de 1992. Foi um conto de ficção científica, que saiu numa revista, Isaac Asimov Magazine, que era publicada não pela Gráfica Cudujudas, mas pela Editora Record. Vários outros escritores brasileiros já haviam publicado peças de ficção nessa mesma revista, antes de mim -- de fato, fui o penúltimo a fazê-lo, antes de a publicação fechar as portas. E a maioria deles, posso garantir, não tinha pretensões à la Rosa ou Lispector.
Falando do que conheço mais intimamente: nunca quis ser Rosa ou Lispector, e tenho 20 anos de carreira como escritor de ficção, período em que publiquei cinco livros-solo, entre romances e coletâneas de contos, e participei de pelo menos 15 antologias. Não que minha carreira seja, de algum modo, excepcional: há gente com currículos muito mais recheados -- por exemplo, Jorge Luís Calife (publicado originalmente pela Nova Fronteira, mesma editora de José Lins do Rego) e Gerson Lodi-Ribeiro. E também não é o caso de que apenas quarentões-cinquentões façam parte do fenômeno "não quero ser Guimarães Rosa": basta checar, por exemplo, a obra de Jim Anotsu ou Ana Cristina Rodrigues.
Há ainda, claro, o fato saliente de que os ficcionistas brasileiros mais vendidos (e, provavelmente, mais lidos) da atualidade -- Paulo Coelho, André Vianco, Eduardo Spohr -- não têm e, sou capaz de apostar, não querem ter porra nenhuma a ver com Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, em termos estilísticos ou de tratamento da linguagem.
A afirmação de que "todos" os escritores em atividade no Brasil, hoje, parecem preocupados em substituir Rosa ou Clarice no panteão das letras lusófonas deve, suponho, ser relegado relegada ao reino da ignorância -- ou da hipérbole. Uma chave para a interpretação surge quase no fim da resenha:
"O erro de Glover é, portanto, o tipo de livro que a literatura brasileira contemporânea “que se leva a sério” dificilmente pariria (ou que, pelo menos, seria visto com muita desconfiança por conta de sua visível ausência de grandes ambições)."
Literatura "que se leva a sério". Mais uma vez falando sobre o que conheço melhor, digo que levo a maior parte de meus escritos ficcionais muito a sério. Não há um conto de crime e mistério que escrevi que não tenha custado pelo menos uma noite em claro, revisando pontas soltas, plots e contraplots. E admito quase suei sangue para terminar o conto de ficção científica No vácuo, você pode ouvir o espaço gritar, que deve ser publicado no fim do ano. Ah, mas o "que se leva a sério" do original está entre aspas, aspas irônicas, supõe-se. Então, o que a frase significa, exatamente?
Arrisco dizer que significa "que espera ser levado a sério pelo circuito Sabático-Prosa&Verso-Ilustríssima-Flip". Pelo, com o perdão da palavra, sistemão literário brasileiro.
Agora, não tenho nada contra o "sistemão", per se. Também não tenho nada contra o fato de o sistemão não dar valor à minha obra -- eu também não dou valor a ele. Basicamente, não acho que trocadilho infame seja o equivalente de poesia, e não me interesso por livros cujos protagonistas são intelectuais apaixonados por periguetes que escrevem livros sobre como é difícil escrever um livro quando se é um intelectual apaixonado por uma periguete (ou, na versão feminina, protagonizados por belas intelectuais apaixonadas por personal trainers que escrevem livros sobre como é difícil, etc., etc.)
O que contesto, veementemente, é a pretensão do "sistemão" de arrogar-se -- com o beneplácito e a cumplicidade da imprensa -- o papel de expressão da totalidade da literatura brasileira.
Porque, conforme exposto à exaustão nos parágrafos acima, ele obviamente não é nada disso.
O leitor mais atento vai ter notado que, durante toda a discussão, evitei entrar na questão da qualidade. Os motivos para isso são dois: primeiro, porque há muita coisa boa (e muito mais coisa ruim) tanto dentro do "sistemão" quanto fora dele. Não há nada, a priori, que faça uma história sobre a dor de cotovelo de um petista desencantado que se exila em Paris para lamber as feridas da adesão de Lula ao malufismo e pesquisar a vida de Molière melhor (ou pior) do que uma história sobre a invasão da Terra por lulas inteligentes de Alfa-Centauri. Embora eu certamente prefira ler a segunda, mas isso é mais uma questão de gosto pessoal.
Segundo, porque, na definição do que é a totalidade da literatura brasileira, a questão da qualidade é irrelevante. Você pode detestar Michel Teló ou Zeca Pagodinho ou Chico Buarque, mas você não pode negar que todos os três são parte da totalidade da música brasileira. E é esse reconhecimento mínimo -- de que o que fazemos, nós que não queremos ser Guimarães Rosa, é, antes de mais nada, literatura brasileira -- que nos é seguidamente, consistentemente, irritantemente, negado.
Quero deixar bem claro que este artigo não é um ataque a Bán Jacobsen (com quem, aliás, já dividi espaço em antologias organizadas pela Não Editora). Destaco seu artigo por considerá-lo exemplar do senso-comum do meio literário, para o qual tudo o que não aspira ao "sistemão" torna-se, automaticamente, invisível. Outra expressão desse mesmo senso-comum aparece na seguinte declaração da editora e agente literária Luciana Villas-Boas ao jornal O Estado de São Paulo:
Luciana, profissional tarimbada do meio, que já foi editora do mesmo Calife citado acima, também aparece, nesta declaração, cega para o sucesso comercial de Coelho, Vianco, Spohr. Essa é uma cegueira que atinge as próprias editoras, cevadas dentro do "sistemão": Vianco, por exemplo, foi abordado por uma grande casa editorial brasileira apenas após anos de sucesso como autor virtualmente independente. E a existência de editoras como a Draco, criadas para viver à margem do "sistemão", é simplesmente ignorada.
Não se trata de atacar o "sistemão": quem aprecia trocadilhos infames e masturbação metalinguística é perfeitamente livre para seguir nessa linha. Como eu disse no primeiro parágrafo desta postagem, literatura é como sexo: se autor e leitor curtem, ninguém tem nada que dar palpite. O ponto é questionar o pressuposto de que o sistemão é tudo, de que não existe vida fora dele -- pressuposto que a imprensa, numa falha trágica de seu dever de bem informar o leitor, não só compra como também reforça.
Nós não queremos ser Guimarães Rosa. Nós existimos. Mais importante ainda, nossos leitores existem. É desonesto e mentiroso fingir o contrário.
Excelente ponto de vista, Carlos. Eu sou um destes leitores do sistemão: gosto de Saramago, Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Dentre os autores novos, gosto bastante do texto do Alex Castro. Nunca li Tolkien, George R. R. Martin ou Cornwell, embora já tenha lido alguns contos do Asimov e tenha gostado bastante. Achei interessante saber do teu ponto de vista, mesmo que literatura fantástica não seja do meu interesse (sim, é uma contradição eu afirmar isto e gostar de Saramago, Machado de Assis e Jorge Luis Borges).
ResponderExcluirAcredito no melhor dos dois mundos. Uma boa história contada com um cuidado. Exemplos: "Uma pequena morte", do Robert Silverberg; "O Homem Duplo", do P.K. Dick ou, até mesmo, a série de Ender, do Orson Scott Card e, para não ficar em exemplos de fora, "Selva Brasil", do Roberto de Sousa Causo, são exemplos, para mim, de literatura bem escrita e que são FC. Uma coisa não exclui a outra, pelo menos na minha humilde opinião.
ResponderExcluirSilvio, é como escrevi: "há muita coisa boa (e muito mais coisa ruim) tanto dentro do "sistemão" quanto fora dele". A dicotomia não é entre gêneros especulativos vs. qualidade, mas entre gênero dominante vs. gêneros especulativos. O problema surge, exatamente, quando se vende a ideia e que o gênero dominante monopoliza a qualidade ou, pior, que ele é o único que existe.
Excluir"A afirmação de que "todos" os escritores em atividade no Brasil, hoje, parecem preocupados em substituir Rosa ou Clarice no panteão das letras lusófonas deve, suponho, ser relegado ao reino da ignorância"
ResponderExcluirO correto não seria "deve ser relegada", concordando com "a afirmação" ?
Yep. Grato pelo aviso.
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