O mistério do Santo Prepúcio

Circuncisão do Cristo, detalhe de pintura de Friedrich Herlin de Nördlingen, 1466

Esta é mais uma postagem  da minha série sazonal sobre a mitologia da natividade de Jesus, cujos capítulos anteriores, ambos do ano passado, podem ser lidos aqui e aqui. Desta vez, vou tratar de um tema especialmente delicado: o que terá acontecido com o prepúcio de Jesus?

O filho de Maria e José era, acho que todo mundo se lembra, judeu. Daí, presume-se que tenha sido circuncidado, de acordo com a lei mosaica. O Evangelho de Lucas, na verdade, afirma que foi exatamente isso que aconteceu:

"Completados que foram os oito dias para ser circuncidado o menino, foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo, antes de ser concebido no seio materno." (Lc 2:21).

A trama se complica quando levamos em consideração estes outros versos, do Evangelho de João:

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. / Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma bebida. (Jo 6:54-55)

Não é preciso ter muita imaginação para ver um romance de Dan Brown, aí, pedindo para ser escrito: se a carne de Jesus é o elixir da vida eterna, e se o prepúcio ficou para trás quando o corpo ressuscitado do messias foi arrebatado ao céu, então...

É certo que, de acordo com o dogma católico, toda hóstia consagrada é, na verdade e em essência, um pedaço da carne de Jesus, mas para que se fiar numa peça de teologia abstrusa e sutil se o artigo legítimo ainda se encontra disponível? Outras possibilidades interessantes logo surgem -- se há células de Jesus por aí, que tal um clone? Em seu romance Choke, Chuck Palahniuk, mesmo autor de Clube da Luta, brinca com a ideia.

Mesmo pondo as considerações indigestas ou por demais rebuscadas lado: num ambiente mental onde se admite  que o mero contato com um retalho da capa de um santo morto pode curar doenças, de que maravilhas o toque de um pedaço da pele de uma das Pessoas da Trindade não seria capaz?

Questão: mas será que o prepúcio se encontra na Terra, mesmo? Um problema teológico candente, durante a Idade Média, era a de o que teria acontecido com as partes "perdidas" do corpo de Jesus -- não apenas o prepúcio, mas aparas de unha, fios de cabelo, sangue, saliva, suor -- no instante da ressurreição?

O dogma de que, no fim dos tempos, todas as pessoas serão ressuscitadas, mesmo aquelas cujos corpos já tiverem sido completamente decompostos, traz algumas dificuldades, filosóficas e práticas, interessantes.

Hoje em dia, por exemplo, sabemos que toda a matéria do universo é reciclada -- que nossos corpos contêm átomos que já foram usados em outros lugares, em outras formas, inúmeras vezes. Então, se há uma célula no meu corpo feita com átomos que estavam originalmente no corpo de Átila, o Huno, quem terá prioridade de acesso a eles na ressurreição?

Os sábios medievais ainda não conheciam a lei da conservação da matéria, nem tinham a prova de que a teoria atômica dos gregos representava uma melhor aproximação da realidade, mas ainda assim Tomás de Aquino passa um bom tempo, em sua Summa Contra Gentiles, escrita no século 13, argumentando que o corpo ressuscitado é o mesmo corpo, e não apenas uma cópia muito bem feita.

Trata-se de uma questão delicada: se a pessoa que vai passar a eternidade no fogo do inferno (ou nas delícias do Paraíso) não for mesmo eu, mas apenas um impostor -- digamos, um androide ou clone -- que partilha de todas as minhas memórias, então, de repente, minhas preocupações (ou esperanças) sofrem uma revisão radical.

Ao fim e ao cabo, Aquino joga a toalha e diz que, como a Deus tudo é possível, os paradoxos não se aplicam e, sim, os corpos ressuscitados são os mesmos corpos originais, e as personalidades são exatamente as mesmas, não meras cópias.

Nesse contexto, a questão dos restos mortais de figuras arrebatadas em carne e osso ao Paraíso, como Jesus e Maria, tornava-se espinhosa. Como explica o historiador Charles Freeman em seu livro pioneiro sobre o papel cultural das relíquias na Idade Média, Holy Bones, Holy Dust,"se cada parte do corpo vai se reerguer para o Juízo Final, então aqueles que foram antes, como Cristo e Maria, devem ter seus corpos completos consigo. Então não poderia haver relíquias do sangue do Cristo ou do leite da Virgem (...) No entanto, o próprio Vaticano alegava possuir relíquias de Cristo, incluindo um de vários exemplares do Santo Prepúcio".

Vários exemplares. Havia um em Roma, presente do imperador Carlos Magno ao papa Leão III. Havia outro em Antuérpia, obtido pelo rei Balduíno I de Jerusalém (que não deve ser confundido com o imperador Balduíno I de Constantinopla, este último um notório traficante de relíquias de Jesus, que distribuía para comprar ajuda militar na Europa); entre outros: os números vão de oito a dezoito.

De acordo com a Wikipedia, a maior parte dos supostos Santos Prepúcios foi destruída na Reforma ou na Revolução Francesa. Mas, até 1983, a diocese católica de uma cidade italiana, Calcata, realizava procissões anuais com um relicário que conteria o precioso fragmento do Pênis do Filho.

As procissões deixaram de ocorrer na década de 80 não por uma questão de compostura eclesiástica (o Vaticano, talvez constrangido pelas piadas infames, já havia decidido, em 1900, sob o papado de Leão XIII, que apenas tocar no assunto do prepúcio divino seria motivo para excomunhão, e a Festa da Circuncisão do Senhor acabou abolida do calendário oficial pelo Concílio Vaticano II) ou desinteresse popular, mas porque o relicário e seu conteúdo haviam sido roubados. Nem a peça, nem os autores do crime jamais foram encontrados -- um jornalista, David Farley, escreveu um livro, An Irreverent Curiosity, a respeito das buscas, infrutíferas, pelo suposto último vestígio material do Rei dos Reis sobre a Terra.

Comentários

  1. Jesus tinha o cromossomo Y? Se tinha de quem ele herdou? Se não tinha então o par era XX? Me ajuda aí Carlos.

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    1. Tinha o cromossomo Y angelical (:

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    2. Oi, Evandro! fazenbdo um breve comercial, eu trato um pouco desta questão no "Livro dos Milagres", no capítulo sobre partenogênese. Depois de o livro ter saído, o Roberto Takata me avisou de que é possível, embora extremamente raro, uma mulher ter um cromossomo Y, herdado do pai, mas desativado. Há uma referência aqui:

      http://www.newscientist.com/article/dn16934-girl-with-y-chromosome-sheds-light-on-maleness.html

      Algo de que eu não sabia, na época em que escrevi.

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  2. É, tem muito com que se pode brincar. Tendo o prepúcio do menino jesus sido protagonista de uma cerimônia religiosa judaica, temos o direito de nós, cristãos, reivindicá-lo nos nossos ritos?

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  3. Por mais que queiramos reivindicar como coisa nossa a eucaristia, até para transgredir seus valores, fica a pergunta no ar: até onde é possível crer que o pão é verdadeiramente carne e o vinho sangue verdadeiro, senão no campo do simbólico. Pq nos é dito: o corpo de Cristo, amém. Mas é o corpo de cristo como é o corpo do irmão que recebeu a hóstia antes de mim, é corpo como é o do excluído jogado na rua à vista de todos? É essa coisa que pesa?

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    1. É só simbólico, assim como é o tal de JC, o mito.

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  4. Hj eu estava lendo um livro da editora Vozes na Biblioteca Mário de Andrade, chamado "Guia de curiosidades católicas" e em um dos verbetes o autor trata da relíquia do Santo Prepúcio, pois bem o autor é inconclusivo nas diferentes teses existentes e coloca o fato de que sob o pontificado de Leão XIII houve o lacre de 3 caixas contendo a suaposta relíquia, e estão, guardadas em um arquivo da Santa Sé.

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