A religião do(a) presidente(a)
Quem acompanha o blog há mais tempo já deve estar com o saco cheio de me ver fazer copy-paste do discurso de John F. Kennedy sobre a separação entre igreja e Estado, mas dada a temperatura e a direção do debate eleitoral, eu me vejo obrigado a repeti-lo.
O contexto do discurso: em 1960, Kennedy era um católico com chances reais de se tornar presidente dos Estados Unidos, algo que alarmava os líderes de igrejas protestantes, e parte da população. Havia um certo folclore, na mente anglo-saxã, de que um governante católico seria um títere do Vaticano, um interventor governando em nome do papa, uma violação, portanto, da soberania nacional (esse medo atávico se reflete na lei britânica que proíbe um católico de assumir o trono do Reino Unido; e, por mais que o temor nos pareça infundado hoje em dia, lembremo-nos de que o Brasil precisou esperar surgir um presidente -- um ditador, na verdade -- luterano antes de ver aprovada a lei do divórcio).
Kennedy tinha motivos mais do que óbvios para tentar dissipar essa preocupação, e foi com esse intuito que se dirigiu à Associação de Ministros Religiosos da Grande Houston, em 12 de setembro de 1960. O trecho crucial aparece nos dois parágrafos abaixo:
Eu acredito em uma América onde a separação entre Igreja e Estado é absoluta, onde nenhum prelado católico dirá ao presidente (se este for católico) como agir, e nenhum ministro protestante dirá a seus fiéis como votar; onde nenhuma igreja ou escola religiosa receberá verbas públicas ou favores políticos; e onde nenhum homem será rejeitado para um cargo público apenas porque sua religião difere da do presidente que poderia nomeá-lo, ou da do povo que poderia elegê-lo.
Eu acredito em uma América que não é, oficialmente, nem católica, nem protestante, nem judaica; onde nenhuma autoridade pública pede ou acata instruções sobre políticas públicas do papa, do Conselho Nacional de Igrejas ou de qualquer outra fonte eclesiástica; onde nenhum corpo religioso busca impor sua vontade, direta ou indiretamente, à população ou aos atos das autoridades públicas; e onde a liberdade religiosa é tão indivisível que um ato contra uma igreja será tratado como um ato contra todas.
Eu acredito em uma América que não é, oficialmente, nem católica, nem protestante, nem judaica; onde nenhuma autoridade pública pede ou acata instruções sobre políticas públicas do papa, do Conselho Nacional de Igrejas ou de qualquer outra fonte eclesiástica; onde nenhum corpo religioso busca impor sua vontade, direta ou indiretamente, à população ou aos atos das autoridades públicas; e onde a liberdade religiosa é tão indivisível que um ato contra uma igreja será tratado como um ato contra todas.
O que Kennedy estava dizendo, em suma, cabe em cinco proposições:
1. A religião do agente público deve ser irrelevante frente a sua capacidade para a função;
2. A religião do agente público deve ser irrelevante para o exercício de sua função;
3. Nenhuma religião deve receber favores do Estado;
4. Nenhuma religião deve tentar influenciar o Estado;
5. Perseguição religiosa é inaceitável.
É importante notar que essas proposições funcionam como uma espécie de salvo-conduto religioso para o candidato: se adotadas, não importa se o político é satanista, fundamentalista, criacionista, panteísta ou o raio que o parta: os princípios de irrelevância, não-favorecimento e veto à perseguição garantem que a filiação religiosa do mandatário não vai contaminar as políticas públicas, nem terá o aparelho do Estado como instrumento.
No Brasil, o que os candidatos buscam fazer -- e a dose de má-fé implícita nesse movimento eu deixo para o leitor julgar -- é dar a impressão aos eleitores de que a religião deles será a privilegiada. Sejam eles quem forem. O fato de Marina Silva ser identificada claramente com a Assembleia de Deus só faz com que a pose de "privilégios para todos" tenha menos credibilidade, só isso.
Melhor seria se os brasileiros de todos os credos aceitassem o fato de que é impossível privilegiar a todos, e que o que vem acontecendo de fato -- um rodízio de privilégios, com um acordo internacional que agrada a X, um alvará de construção que agracia Y, um beija-mão que mexe com a vaidade de Z -- só faz criar uma espiral descendente que ameaça tanto a forma quanto o espírito da democracia.
O discurso de Kennedy não foi feito para uma plateia de ateus, mas de ministros protestantes. Tornar a religião irrelevante para o Estado não é desprestigiá-la: é garantir sua liberdade. Seria bom se o povo brasileiro percebesse isso.
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