Este blog não vai curar seu câncer

Uma objeção que encontro com frequência cada vez maior, toda vez que me posiciono sobre a histeria da fosfoetanolamina/"pílula do câncer" que vem se propagando com a cumplicidade irresponsável de parte da mídia e, agora, do próprio governo, é a de que "não se deve negar nenhuma esperança de saúde a pacientes de câncer".

A frase, e variações que dizem em essência  a mesma coisa, é postada em redes sociais e aparece em caixas de comentário, muitas vezes acompanhada da insinuação -- ou a acusação direta -- de que só um monstro insensível ou um tecnocrata arrogante com uma planilha Excel no lugar do coração poderia pensar em negar a um doente "uma chance de cura".

O que há de errado nesses apelos ao sentimento? Duas coisas.

Primeiro, ele deixa em aberto o ponto crucial de quem decide o que é "esperança de saúde" ou "chance de cura". Basta dar na EPTV? Se eu sair por aí falando que as romãs do meu jardim curam câncer, isso vira uma "esperança de saúde" para os pobres coitados que acreditarem em mim? Como separamos "esperanças" e "chances" verdadeiras de fraudes, mentiras, enganos?

Segundo: o apelo ao sentimento faz vistas grossas ao mal que certas falsas esperanças e chances impossíveis trazem, não só ao paciente, mas à sociedade em geral.

O título desta postagem é inspirado no da obra This Book Won't Cure Your Cancer, autobiografia do jornalista britânico Gideon Burrows. Diagnosticado com um câncer inoperável no cérebro que vai crescer inexoravelmente atá matá-lo, Burrows relata, no livro, como foi pressionado por amigos e parentes a tentar "qualquer coisa" contra a doença porque, afinal, "uma esperança é melhor que nada".

Primeiro, Burrows menciona como algumas pessoas insistiram para que ele procurasse um cirurgião que aceitasse operar seu cérebro, mesmo depois de três outros -- o médico do sistema público de saúde, depois um especialista particular e, por fim, um professor universitário -- terem declarado que o câncer era inoperável. Não seria melhor continuar em busca de alguém que lhe desse esperança?

A resposta do autor: dada a unanimidade dos diagnósticos e prognósticos anteriores, qualquer médico que olhasse para os exames e chegasse a uma conclusão diferente seria, muito provavelmente, um charlatão ou um incompetente. Melhor ficar longe desse tipo de gente.

Em seguida, ele fala dos amigos e colegas que vinham sugerir "qualquer coisa" -- mudanças de dieta, ervas, o curandeiro que ajudou a tia Petúnia -- e filosofa sobre como essa ideia de que, no desespero, "qualquer coisa" é válida não faz o menor sentido: e se me dissessem que estourar cem balões vermelhos vai curar meu câncer, eu deveria estourá-los?, pergunta-se. Claro que não, responde, porque é absurdo. Aqui vale a pena citar suas palavras literais:

"Não posso culpar as famílias que sofrem, os pacientes que estão morrendo, aqueles que quando perdem tudo, buscarão qualquer coisa que lhes seja oferecida (...) Mas quem nos oferece aquela qualquer coisa sem um fundamento preciso, correto e responsável tira vantagem de nosso desespero e de nossas esperanças. A vulnerabilidade dos pacientes de câncer e de seus entes queridos dá um poder enorme a quem se propõe a oferecer uma cura ou um tratamento. Quem tem esse poder deve ser obrigado a prestar contas de como o obteve e de como o utiliza". 
 Mais adiante, no que soa quase como uma prefiguração do "caso fosfo" brasileiro, com o incrível investimento de R$ 10 milhões liberados para a pesquisa da substância num momento de intensa restrição orçamentária para a ciência nacional, escreve:

"Quanto da pesquisa legítima sobre câncer é desacelerada por causa da presunção imerecida de poder daqueles que tomam para si os pacientes e o dinheiro de que a pesquisa legítima tão desesperadamente necessita?"
E este outro trecho, que parece sob medida para descrever os efeitos dos "20 anos de distribuição gratuita" da "fosfo" e o impacto dos depoimentos de pacientes satisfeitos, colhidos nesse tempo:

"Em vez de provar que terapias alternativas funcionam, depoimentos pessoais são os inimigos da prova. Primeiro, oferecem aos pacientes de câncer uma visão enviesada da eficácia do tratamento alternativo, escondendo possíveis falhas e fraquezas da terapia. Depois, a publicação exclusiva de depoimentos pessoais rouba da ciência estatísticas e informações que permitiriam aos médicos avaliar como todos os pacientes (e não apenas os que deixam testemunhos) reagem e tratam o câncer. Isso impede que pesquisadores tenham uma visão mais correta do que funciona e do que não funciona".

Enfim, o problema fundamental com a afirmação de que "qualquer esperança de saúde" é válida é que é quase impossível separá-la de uma espécie de salvo-conduto para que gente mal intencionada, vaidosa ou que simplesmente não sabe do que está falando saia por aí vendendo ou empurrando esperanças falsas e, no limite, destruindo a saúde e o patrimônio de vidas fragilizadas.

Repetindo as palavras de Burrows: "quem nos oferece aquela qualquer coisa sem um fundamento preciso, correto e responsável tira vantagem de nosso desespero e de nossas esperanças". E a "fosfo" carece, exatamente, de "um fundamento preciso, correto e responsável". Só o que se tem são meia dúzia de estudos em linhagens celulares e em camundongos, com dados insuficientes, até mesmo, para que se iniciem testes eticamente responsáveis em seres humanos.

Para o senso-comum que defende a "crença na crença" -- a ideia de que acreditar em alguma coisa, mesmo que seja bobagem, é melhor do que encarar fatos dolorosos -- isso talvez não seja, em princípio, um problema. Fazendo um rápido mea-culpa, eu mesmo nunca escrevi uma palavra contra a garrafada de babosa do frei Romano Zago, por exemplo, embora seu livro Câncer Tem Cura! seja um compêndio bastante didático de falácias lógicas e embaraços pseudocientíficos.

Sobre a "crença na crença", Edzard Ernst, um pesquisador especializado em terapias alternativas,
resume a situação numa equação: A+B > A. Com isso, ele quer dizer que uma terapia convencional ("A") somada a uma terapia alternativa ("B") quase sempre tem um impacto na saúde do paciente um pouco superior ao da terapia convencional sozinha, mesmo se a terapia "B" for objetivamente inútil, só por causa do efeito placebo -- o conforto psicológico de estar recebendo algo "especial".

Esse sistema, no entanto, depende de um equilíbrio hierárquico bastante preciso entre "A" e "B". O caso da "fosfo" -- insuflado por uma mídia irresponsável, abraçado por políticos ignorantes e desesperados -- quebrou esse equilíbrio de modo perigoso. De repente, muita gente começa a acreditar que "B" é melhor, vale mais, é superior a "A". Sugere-se que as pessoas abandonem "A", para que "B" possa funcionar. Indícios de que a "B" é inútil ou prejudicial são ignorados. E, no lance vexaminoso dessa semana, o próprio sistema legal de controle sanitário se vê sabotado, bem como os protocolos científicos, que existem por um bom motivo.

Voltando ao texto de Burrows:

"Se existe uma linha entre qualquer coisa que devemos tentar e as quaisquer coisas que não devemos, se existe uma linha entre quaisquer coisas que são ridículas e quaisquer coisas que não são ridículas, quem traça a linha? Quem decide? (...) Existe algo que traça uma linha mais clara: chama-se pesquisa científica".

Antes, no início do livro, ele escreve: "Descobri rapidamente que o mundo do câncer é um lugar vulnerável. É preciso força de vontade para resistir a pérolas de informação que presumem a própria validade, quando na verdade não têm nenhuma". Em minha humilde opinião, o governo, a mídia e a sociedade em geral deveriam estar somando suas forças a esse esforço de resistência, e não trabalhando de modo tão ativo contra ele.

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