A mentira dos "2% de sobrevivência"

Meus contatos recentes com a subcultura das "terapias alternativas" para câncer andaram me expondo, seguidas vezes, à alegação de que a "quimioterapia tem uma taxa de sobrevivência de apenas 2%". Como costuma acontecer no reino das pseudociências, trata-se de uma frase de impacto mas cujo sentido exato, uma vez que se para para pensar a respeito, não é claro: o que essa "taxa de sobrevivência de 2%" quer dizer, afinal? Que as pessoas que entram em quimioterapia já se encontram tão à beira da morte que a intervenção quase não traz benefício? Que o tratamento quimioterápico é ridiculamente ineficaz? Que a quimioterapia em si mata 98% dos pacientes?

Seja qual for o sentido preciso que se procure atribuir à afirmação, ela é falsa. Mentirosa. Irresponsavelmente cruel. Eu, que já escrevi defendendo a liberação da autobiografia de Adolf Hitler, relutaria, por alguns instantes, em condenar a ideia de pôr na cadeia quem sai por aí repetindo esse tipo de coisa. Porque mentiras como a do "2% de sobrevivência" não só causam desespero e sofrimento que poderiam muito bem ser evitados, como ainda ajudam a convencer gente que teria uma boa chance de cura ou sobrevivência com tratamentos convencionais a jogar tudo para o alto -- inclusive a própria vida -- e abraçar falsas alternativas.

Agora, despejados os adjetivos carregados e extravasada a indignação moral, será que tenho fatos e dados para apoiar o que afirmei acima? Obrigado por perguntar. Claro que tenho. A eles.

A primeira coisa a fazer é checar a fonte original da alegação: em algum momento, afinal, as expressões "quimioterapia" e "2%" acabaram ligadas. Quando e onde isso aconteceu? Bom, foi num artigo de cientistas australianos publicado em 2004. O título era "The contribution of cytotoxic chemotherapy to 5-year survival in adult malignancies", ou "A contribuição da quimioterapia citotóxica para a sobrevivência de 5 anos em tumores malignos em adultos". Os autores concluem que, da taxa de sobrevivência de 5 anos de pacientes de câncer tratados na Austrália (que, o artigo diz, em 2004 era de 60%), a quimioterapia contribui com apenas 2%. 

Veja bem, os australianos não estão dizendo que a quimioterapia mata, ou que 98% das pessoas que fazem quimioterapia acabam morrendo. Eles estão dizendo que a contribuição da quimioterapia para a taxa geral de sobrevivência é de 2%. "quimioterapia tem uma taxa de sobrevivência de apenas 2%" é uma distorção grosseira, irresponsável, criminosa e execrável de "quimioterapia contribui com 2% para a taxa de sobrevivência de 60%".

E a última frase do parágrafo anterior só seria verdadeira se o estudo australiano tivesse chegado a conclusões válidas, o que muito provavelmente não é o caso. Os detalhes você encontra no blog do oncologista David Gorsky, mas resumindo: o trabalho em questão foi duramente criticado dentro da comunidade médica. 

Entre outros motivos, ele ignora leucemias e linfomas, exatamente os dois tipos de tumor contra os quais a quimioterapia é mais poderosa; ignora, também, a diferença entre o uso da quimioterapia como via de ataque principal ao câncer e como via auxiliar. Em muitos casos, a quimioterapia é usada como complemento à cirurgia: as curas e remissões então são atribuídas à cirurgia, e o mérito da químio acaba obscurecido.

 Para efeitos de comparação, Gorsky oferece um estudo, publicado na revista Lancet, que avaliou o impacto da quimioterapia no câncer de mama, agregando os resultados de 123 estudos, envolvendo 100 mil mulheres. O resultado global é de uma redução de 30% na mortalidade atribuída à doença num período de dez anos. 

Como os autores do artigo apontam, esse benefício está ligado ao risco inicial: se o câncer trazia um risco de vida de 10% em dez anos, ao ser detectado, a redução de 30% significará uma queda para algo em torno de 6,6%. Uma vantagem aparentemente pequena, mas que precisa ser vista no devido contexto.

Outro ponto importante levantado pelo oncologista é o modo como os mascates de curas milagrosas e tratamentos mágicos promovem o pânico e a insegurança em torno da quimioterapia como argumento de venda. Trata-se de uma verdadeira estratégia de marketing, implementada ao preço de intenso sofrimento psicológico para os pacientes e, no limite, de vidas humanas. 

Gorsky pondera que o retrato da quimioterapia oferecido pelos "alternativos" guarda boa semelhança com a imagem que a técnica tinha, na comunidade científica, 50 ou 60 anos atrás, quando o entusiasmo inicial com os primeiros sucessos no uso de drogas contra o câncer, na década de 30,  começou a arrefecer diante de novas dificuldades. A maioria das frases contra a químio atribuídas a médicos cientistas mais citadas na literatura dos charlatões foi extraída de trabalhos publicados nessa "Idade Média" da quimioterapia.

Mas muita coisa mudou desde então. Citando Gorsky: "Por volta de 1970, a doença de Hodgkin passou de uma sentença de morte para ser vista como amplamente curável com drogas, o primeiro câncer adulto curado por quimioterapia. Some-se a isso o progresso espantoso feito em cânceres infantis na época, e a maré começou a virar". Resumindo, os críticos alarmistas da quimioterapia estão com a cabeça no passado distante, assim como os proponentes da ideia de que a fosfoetanolamina funciona atacando células anaeróbicas apelam para uma visão da biologia do câncer desacreditada também desde, pelo menos, a década de 70. No fim, eles todos se merecem.  Só quem não merece nada disso são suas vítimas.

Comentários

  1. Vc defende a pseudociência.1-Deixe algum link aqui, de algum estudo que mostre a suposta eficácia da quimioterapia.Estudo amplo,envolvendo vários tipos de câncer.Falar até papagaio fala.Ciência não se faz com FALÁCIA.2-No seu perfil ,vc fala que o estudo dos Australianos é muito ruim.Vc queria que a realidade fosse diferente(EMOÇÃO)mas não é.3-No caso da fosfoetanolamina sintética ,mais uma vez vc defende a pseudociencia.Mesmo sabendo que o MCTI está fazendo testes com um produto DIFERENTE do grupo da USP(eles deixam claro que estão testando o produto da Unicamp)que já se mostrou INEFICAZ(Estudo do Dr CALIXTO deixa claro a diferença entre as duas sinteses:Fos DA Usp,na dose de 500mg Conseguiu inibir o tumor em células de melanoma implantadas em camundongos nude-Fos DA Unicamp,na dose de 500mg NÃO conseguiu inibir o tumor em células de melanoma implantadas em camundongos nude.Todos os Estudos que forem realizados com a sintese da UNICAMP terão resultados negativos.O Calixto já mostrou que ela não tem efeito anti-tumoral.Vão torrar o dinheiro dos brasileiros sem testar o produto que deveria ser testado.Mas vc defende.Afinal,é tudo que vc quer(EMOÇÃO),então pouco importa.Ciência não se faz com EMOÇÃO.

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    1. Paulo, olha o que ele é:
      Carlos Orsi, Escritor de ficção científica, terror, fantasia e mistério; autor de livros e artigos de não-ficção sobre ciência e história; jornalista tentando largar o hábito; blogueiro.

      Precisa falar mais algo?

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    2. Nada como o aroma de um ad hominem ao amanhecer...

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    3. Carlos, desista. Esses caras não viram Apocalypse Now...

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  2. Caro Paulo M,
    Seu comentário não é sobre o assunto desse post. Ainda assim não é correta sua afirmação de que o Carlos Orsi defende a pseudociência. Se o senhor conhecesse um pouco de metodologia científica, saberia que um experimento deve ser reprodutível independentemente do operador. Esse é justamente um dos testes para encontrar pseudociência. Cuidado com resultados que só podem ser observados no laboratório do autor. O suposto resultado da USP/SC deveria ser reprodutível na Unicamp, na UNESP, na UNIP, em Berkeley, em Juiz de Fora, em Maputo, etc. Se o composto só funcina na USP/SC há algo estranho. Há inúmeros casos de resultados pseudocientíficos que só podem ser obtidos no laboratório do autor do estudo. Quando isso ocorre, a comunidade conclui que por algum motivo intencional ou não esses resultados não estão corretos e devem ser desconsiderados. É assim que a ciência avança.

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    1. Sim ser reprodutível depois que vc aprende a fazê-lo... N é a toa que eles detém a patente da síntese... A fosfo n foi descoberta por eles... A síntese capaz de surtir o efeito sim, e essa patente ainda n foi repassada a ngm. Eles deveriam seguir ao que foram contratados... Analisar o composto do Dr Gilberto.

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    2. Na verdade, ninguém detém a patente. Existe um pedido de patente que ainda não foi aceito, e provavelmente não será, porque o processo de síntese foi desenvolvido enquanto os inventores eram funcionários da USP, então a USP teria de ser incluída no pedido, mas não foi. E você se der ao trabalho de visitar o site do MCTI, verá que há relatórios com resultados de testes tanto da síntese original quanto da síntese reproduzida na Unicamp. Há ainda testes com fosfoetanolamina purificada, que é mesmo diferente do conteúdo das cápsulas de São Carlos, que contêm contaminantes vários. O fato de a fosfo purificada não funcionar, aliás, é um sinal bem forte de que o efeito das cápsulas, se é que elas têm algum efeito além do placebo, não é causado por nada do que os proponentes da fosfo pensam.

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    3. A síntese da fosfoetanolamina não foi inventada pela equipe do IQ-USP/SC. Um método de síntese foi desenvolvido por eles. As propriedades do produto final, em se tratando de uma molécula não muito complexa não devem depender do método de síntese, mas sim da pureza da amostra e das impurezas que restam. É possível comprar de um tradicional fornecedor de insumos químicos fosfoetanolamina com pureza muito superior à obtida pelo método desenvolvido no IQ-USP, que pode ser testada.

      O que mais me diverte nesse caso é o que tem de gente sem o mínimo treinamento ou vivência científica repetindo as bobagens que são ditas pelos profetas da fosfoetanolamina e posando de cientista.

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    4. .A fosfoetanolamina é um éster,portanto o grupo da usp teve que fazer uma recristalização ,que deu um cristal não solúvel em água,para que fosse capaz de chegar ao destino sem se desmembrar no caminho por hidrólise.O laudo mostra a diferença gritante entre o efeito das 2 sínteses.Quanto mais purificada for ,pior será.A pureza é do MONOCRISTAL e não da substância.

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    5. Qual laudo, exatamente? Tem link para o PDF?

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    6. Porque este relatório (http://www.mcti.gov.br/documents/10179/1274125/Relat%C3%B3rio+do+Semin%C3%A1rio+sobre+estudos+preliminares+da+Fosfoetanolamina+Sint%C3%A9tica+%28FOS%29/2ca3e868-e3be-491f-9301-ff7bb3ccb99d) afirma que a síntese da Unicamp produziu "os mesmos compostos contidos nas cápsulas analisadas"

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    7. Uau, eu também queria aprender sobre essa nova fase cristalina da fosfoetanolamina não solúvel em água. Onde ela foi publicada? Qual seu grupo de simetria? Já está nas bases de dados de cristalografia? Com eles fazem para ter um monocristal (em maiúsculas, talvez porque assim ele fica mais monocristalino) mais puro que a substância? Algum processo de float zone? Estou realmente curioso.

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    8. Carlos e Leandro,
      O sujeito se faz de combatente da pseudociência e, ao mesmo tempo, afirma que só se pode usar a substância sintetizada em um único laboratório. Depois dessa...

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    9. Caro Maurício.Em NENHUM lugar no mundo,um relatório (pseudocientifico-concentrações diferentes das publicações)tem mais credibilidade que artigos na PUBMED,NATURE,etc.Só No BRASIL.Estudo sem publicação NÃO tem valor.O que está acontecendo no Brasil, é algo Surreal.Apesar de citar o estudo do Dr Calixto,para mim ,o relatório do MCTI não tem nenhuma credibilidade.NÃO TEM PUBLICAÇÃO.É a prova de que vcs defendem A PSEUDOCIÊNCIA.Sequer leram os estudos publicados.

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    10. Fosfoetanolamina não é um éster.

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  3. 6,6% de ajuda na sobrevida? Agora fiquei mais aliviada com a quimioterapia ��. Se um resultado desse fosse ligado a fosfo estariam debochando com gosto como virou missão de vida de vcs.

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    1. Oi, Kedma, não é 6,6% de ajuda na sobrevida, é numa redução do risco de morrer de câncer de 10% para 6,6% -- supondo que o risco inicial fosse de 10%, claro. Se ele fosse muito maior (50%, digamos), a redução seria maior, caindo a 33%. Sei que pode ser difícil trabalhar com números, mas o resultado é: dado um risco inicial X, a quimioterapia corta-o em um terço.

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    2. Esqueça,Kedma.Quando se trata de quimioterapia,ele coloca a EMOÇÃO na frente da RAZÃO.Tenho parente passando pelo processo,e não posso dar falsas expectativas a ele,afirmando que ele tem grandes chances.Sou REALISTA.Não vou vender falsas esperanças.Menos de 4% consegue passar pela quimio,sem que anos depois o CA retorne em outro órgão.É INEFICAZ.As pesquisas SÉRIAS mostram a INEFICÁCIA da quimioterapia.Não queria que fosse assim.Mas É.Ciência não se faz com EMOÇÃO.

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    3. Meus dados sobre a eficácia da químio são baseados em publicações sérias, como o estudo da Lancet sobre câncer de mama, devidamente linkado na postagem. os seus são baseados em quê, exatamente?

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    4. Essa conversa está cada vez mais surreal. Dependendo do tumor, as pessoas recorrem a quimio para ter melhor qualidade de vida e talvez estender um final inevitável. Assim como o Sr. M, eu tive uma parente muito (demasiado) próxima que passou por um processo de quimio pesado. Eu fiquei satisfeito com o resultado: o que era uma expectativa de vida de 3 a 6 meses virou um ano, com alguma qualidade. Mas todos sabíamos de antemão que o desfecho era inevitável. O último cara que sabia fazer milagres e viveu entre nós foi há 2 mil anos. E há controvérsias.

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  4. Não tem nada de Milagre.A verdade, é que estamos perdendo a guerra para o Câncer,justamente por "insistirmos" no caminho ERRADO.Cada vez mais, drogas completamente INEFICAZES .Todos que apresentam o caminho CORRETO,não conseguem fazer testes com humanos,como o grande Thomas Seyfried.Mas vcs conseguem chamar um cara com mais de 300 artigos na PUBMED(Thomas) de lunático.E enaltecem uma figura MEDÍOCRE como Drauzio Balela.É a "ciência" que vcs defendem.Agora temos a "versão" do LUIZ Carlos(UNICAMP).Já que os caras não sabem o que tem nas cápsulas,pergunta pro Luiz SE ele já sabe fazer a diluição do processo(sintese rota),pq o Dr Calixto já divulgou o estudo com as duas sínteses.A sintetizada na USP reduziu o tumor em 36% em 3 semanas, e a da UNICAMP NÃO apresentou NENHUMA redução

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    1. A síntese da USP não reduziu o tumor em 36%, ela reduziu o ritmo de crescimento em 34%. E o quimioterápico tradicional teve uma eficácia que foi o dobro dessa. Então, o quimioterápico é melhor, certo?

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    2. NEGATIVO.LEIA OS ARTIGOS DO DURVANEI.Em um estudo amplo,não é apenas a redução do tumor em menor espaço de tempo ,que vai determinar a eficácia .Tem que se comparar os efeitos adversos de cada droga.Se a Fos é seletiva (só age contra as células cancerosas)e a cisplatina mata indiscriminadamente ,é óbvio que o composto da Usp se mostra mais EFICAZ.É ÓBVIO que em um maior espaço de tempo ,a Fos VAI demonstrar uma redução muito maior,já que é de uso contínuo,diferente da cisplatina.

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