Dando as devidas proporções
Imagino que os leitores habituais deste blog já estão mais ou menos familiarizados com o conceito de viés cognitivo -- filtros mentais e hábitos de pensamento que distorcem o modo como vemos e interpretamos a realidade. Os mais comumente citados são o viés de confirmação (dar importância desproporcional a eventos que parecem confirmar nossas crenças e preconceitos), a validação subjetiva (interpretar uma série de ocorrências não relacionadas como uma cadeia de eventos que confirma nossa visão particular do mundo) e o viés de disponibilidade (achar que nossa experiência pessoal, ou os exemplos que estão mais à mão, são verdadeiramente típicos e representativos da realidade em geral). Cada um deles traz sérios desafios à tarefa, quase sempre árdua, de pensar com clareza, e tem parcela razoável de responsabilidade por muita coisa lamentável no estado atual da civilização.
Mas a leitura de Suspicious Minds, do psicólogo britânico Rob Brotherton, chamou minha atenção para um outro viés que não só é bastante subestimado em seus efeitos, como também muitas vezes passa por raciocínio válido: o caso de uma falácia que não é reconhecida como tal mesmo quando articulada em toda sua glória.
Trata-se do viés de proporcionalidade, a pressuposição de que grandes efeitos requerem, necessariamente, grandes causas. A ideia de que incidentes desprezíveis podem ter efeitos momentosos é repugnante para a intuição humana. Ela exige que um grande evento tenha uma grande causa.
É uma intuição de raízes profundas e afeta até mesmo decisões, muitas vezes, inconscientes: por exemplo, a maioria das pessoas arremessa os dados com força quando quer um número alto, e mais delicadamente quando espera um resultado baixo -- grande força, grande número, e vice-versa. O problema é que essa intuição está errada. Grandes eventos às vezes têm causas grandiosas, às vezes não. A força do arremesso não afeta o resultado do lance de dados.
Brotherton descreve uma série de experimentos engenhosos, realizados por cientistas sociais e psicólogos, que mostra como o viés de proporcionalidade vai fundo no nosso modo de pensar. Num deles, voluntários ouviram duas versões de uma história sobre um acidente aéreo, em que uma explosão no compartimento de carga faz com que o avião perca o controle.
Numa versão, o piloto consegue realizar um pouso de emergência; na outra, o avião cai e todos a bordo morrem. A maioria das pessoas que ouve a versão com o final feliz tende a considerar uma explosão acidental mais plausível do que um atentado terrorista; já quem ouve a versão trágica prefere terrorismo como explicação. Mas, explica o autor, a única variante causal objetiva entre as histórias é a habilidade do piloto.
Outra história envolve uma epidemia num zoológico, causada por um vírus trazido por um de dois novos animais -- um urso ou um coelho. Se a história termina com a população do zoo dizimada, a maioria dos ouvintes tende a suspeitar de que o vírus veio no urso; se a doença vai embora sem deixar maiores sequelas, o suspeito preferido passa a ser o coelho.
O livro de Brotherton trata de teorias de conspiração, e o viés de proporcionalidade é citado como um dos fatores psicológicos que nos predispõem a, se não aceitá-las, ao menos a dar a elas o benefício da dúvida, seja na ausência de evidências ou, mesmo, até quando a preponderância das provas aponta na direção oposta. A morte de John Kennedy é apontada como um exemplo saliente dessa tendência.
No debate político, não é raro ver o exercício do viés de proporcionalidade ser tratado como sinal de profunda sabedoria, um argumento válido em si mesmo. Quem o aplica geralmente lança a frase "mas você não acha mesmo que foi só isso?", seguida por um piscar de olhos ou um arquear de sobrancelhas.
Mas a leitura de Suspicious Minds, do psicólogo britânico Rob Brotherton, chamou minha atenção para um outro viés que não só é bastante subestimado em seus efeitos, como também muitas vezes passa por raciocínio válido: o caso de uma falácia que não é reconhecida como tal mesmo quando articulada em toda sua glória.
Trata-se do viés de proporcionalidade, a pressuposição de que grandes efeitos requerem, necessariamente, grandes causas. A ideia de que incidentes desprezíveis podem ter efeitos momentosos é repugnante para a intuição humana. Ela exige que um grande evento tenha uma grande causa.
É uma intuição de raízes profundas e afeta até mesmo decisões, muitas vezes, inconscientes: por exemplo, a maioria das pessoas arremessa os dados com força quando quer um número alto, e mais delicadamente quando espera um resultado baixo -- grande força, grande número, e vice-versa. O problema é que essa intuição está errada. Grandes eventos às vezes têm causas grandiosas, às vezes não. A força do arremesso não afeta o resultado do lance de dados.
Brotherton descreve uma série de experimentos engenhosos, realizados por cientistas sociais e psicólogos, que mostra como o viés de proporcionalidade vai fundo no nosso modo de pensar. Num deles, voluntários ouviram duas versões de uma história sobre um acidente aéreo, em que uma explosão no compartimento de carga faz com que o avião perca o controle.
Numa versão, o piloto consegue realizar um pouso de emergência; na outra, o avião cai e todos a bordo morrem. A maioria das pessoas que ouve a versão com o final feliz tende a considerar uma explosão acidental mais plausível do que um atentado terrorista; já quem ouve a versão trágica prefere terrorismo como explicação. Mas, explica o autor, a única variante causal objetiva entre as histórias é a habilidade do piloto.
Outra história envolve uma epidemia num zoológico, causada por um vírus trazido por um de dois novos animais -- um urso ou um coelho. Se a história termina com a população do zoo dizimada, a maioria dos ouvintes tende a suspeitar de que o vírus veio no urso; se a doença vai embora sem deixar maiores sequelas, o suspeito preferido passa a ser o coelho.
O livro de Brotherton trata de teorias de conspiração, e o viés de proporcionalidade é citado como um dos fatores psicológicos que nos predispõem a, se não aceitá-las, ao menos a dar a elas o benefício da dúvida, seja na ausência de evidências ou, mesmo, até quando a preponderância das provas aponta na direção oposta. A morte de John Kennedy é apontada como um exemplo saliente dessa tendência.
No debate político, não é raro ver o exercício do viés de proporcionalidade ser tratado como sinal de profunda sabedoria, um argumento válido em si mesmo. Quem o aplica geralmente lança a frase "mas você não acha mesmo que foi só isso?", seguida por um piscar de olhos ou um arquear de sobrancelhas.
Ótimo texto, Carlos. Li um livro chamado "A Arte de Pensar Claramente" (Rolf Dobelli) que é um bom apanhado dos vieses cognitivos. Agora estou encarando o "Rápido e Devagar" do Daniel Kahneman.
ResponderExcluirEste é um assunto de divulgação obrigatória para reduzirmos as crendices, superstições e até mesmo grandes erros de julgamento. Pena ser de total desconhecimento da população.