Células-tronco, esperança e a lição de Mesmer

Na próxima semana, a FDA -- que é a Anvisa lá dos Estados Unidos -- deve começar a decidir como regulamentará as terapias baseadas em injeções de células-tronco. Atualmente, clínicas norte-americanas são livres para oferecer (leia-se, *vender*) esse tipo de tratamento, mesmo sem a devida comprovação científica de eficácia e segurança.

Cientistas pressionam a FDA para que submeta as terapias de células-tronco aos mesmos tipos de exigência que pesam sobre novos medicamentos, o que inclui estudos detalhados e uma razoável certeza estatística de que a coisa funciona e não faz mal. É importante notar que há vezes em que mesmo essa certeza razoável se revela furada, mais tarde.

Os vendedores de células-tronco, claro, estão esperneando. Acusam os cientistas de atuar em conluio com a indústria farmacêutica para sufocar novas terapias promissoras (onde já ouvimos essa conversa antes?),  e dizem que a oferta ampla das terapias, mesmo quando ainda não testadas e comprovadas, faz a ciência avançar e "traz esperança para as pessoas".

A parte sobre "fazer a ciência avançar" é discutível tanto do ponto de vista técnico como ético. Tecnicamente, para ajudar no progresso da ciência, os tratamentos teriam de ser aplicados sob um conjunto muito específico de condições, incluindo uma distribuição aleatória de participantes e a presença de grupos de controle. Um esquema do tipo "pagou, levou" não ajuda muito. Já do ponto de vista ético, fica o incômodo de vender o que não se pode entregar, seja participação num suposto "estudo científico" (inútil e inválido se realizado sem os controles adequados) ou uma promessa de cura.

Já a parte da esperança me faz pensar na interpretação pessimista do mito de Pandora -- de que a "esperança" preservada no fundo da caixa, depois que todos os males foram libertados no mundo, não estava lá como alívio, mas sim como uma maldição a mais. Ouvir dizer que isso ou aquilo vai curar sua doença, ou que fulano ou beltrano passaram pela terapia X e agora estão bem não é evidência, e sim boato. E o que se ganha ao acreditar num boato não é esperança, e sim ilusão.

Esse ponto fundamental, embora amplamente ignorado até hoje, na verdade está estabelecido há séculos. Em 1784, cinco anos antes da Revolução Francesa, o rei Luís XVI criou uma comissão de notáveis (entre eles o inventor do para-raios, o americano Benjamin Franklin, e o pai da química moderna, Antoine Lavoisier) para estudar a alegações do alemão Franz Anton Mesmer, de que teria descoberto uma nova força da natureza, o "magnetismo animal". Essa costuma ser considerada a primeira investigação sistemática de um fenômeno paranormal conduzida na história do Ocidente.

Hoje em dia, Mesmer é mais lembrado como um precursor do estudo da hipnose, mas seus "magnetismo animal" envolvia muito mais do que isso: ele alegava que era possível carregar corpos e objetos com essa força, de modo análogo a uma carga elétrica, e que essa "carga magnética" poderia ser sentida, detectada e transferida, produzindo efeitos mensuráveis. Os testes realizados pelo grupo de Franklin e Lavoisier (por exemplo, pedir a um voluntário "sensitivo" que identificasse qual das árvores de um bosque havia recebido uma "sobrecarga" de magnetismo) concluíram que o magnetismo animal era uma produção imaginária e que tudo não passava de sugestão.

Um capítulo especialmente curioso do relatório entregue pela comissão ao rei é o que explica por que -- segundo uma sugestão do próprio Mesmer -- fenômenos de cura foram excluídos da análise. A justificativa:

"Observações realizadas ao longo dos séculos provam, e os médicos reconhecem, que a Natureza sozinha e sem a ajuda de tratamento médico cura um grande número de pacientes. Se o magnetismo for ineficaz, usá-lo para tratar pacientes seria deixá-los nas mãos da Natureza. Ao tentar determinar a existência desse agente, seria absurdo escolher um método que, ao atribuir ao agente as curas efetuadas pela Natureza, tenderia a provar que ele tem uma ação útil e curativa, mesmo que não tenha nenhuma (...) M. Mesmer rejeitou a cura de doenças quando esse método de provar o magnetismo foi proposto (...) é um erro, disse ele, acreditar que esse tipo de prova é irrefutável: nada prova de modo conclusivo que o médico ou a medicina curam os doentes".


Nos séculos que nos separam de Lavoisier, Franklin e Mesmer, foram desenvolvidas técnicas estatísticas que permitem determinar, com razoável confiança, se o que curou o doente foi mesmo o médico, a medicina ou a "Natureza", mas na ausência dessas técnicas -- mais precisamente, de estudos bem planejados e bem conduzidos --, a observação do relatório se mantém tão válida hoje quanto era antes da Queda da Bastilha.

Uma tréplica comum é a de que, mesmo se a esperança for ilusória, o que há de mal em oferecer uma ilusão confortável enquanto esperamos que a natureza faça seu trabalho? O problema com esse raciocínio -- apenas um dos problemas, na verdade -- é o de que ilusões, principalmente em questões de vida ou morte, saúde e doença, produzem consequências que se propagam muito depressa: na esfera individual, afetam comportamentos, sentimentos, decisões às vezes cruciais. Na coletiva, podem vir a comprometer o rumo de políticas públicas.

No caso específico das terapias duvidosas de células-tronco praticadas nos Estados Unidos, observadores apontam que os cientistas que devem depor perante a FDA terão uma tarefa espinhosa: a de explicar que os estudos com essas células são promissores, mas que a tecnologia ainda não está madura para ser oferecida ao público. Isso seria um "passeio na corda-bamba", ainda mais neste nosso mundo em que slogans passam por raciocínio e tudo parece requerer uma resposta inequívoca e imediata.

Essa estrutura de incentivos, que favorece o entusiasmo e a assertividade, também vem seduzindo pesquisadores, disse ao site de notícias biomédicas STAT a especialista em bioética Leigh Turner. Os acadêmicos "são parte da máquina de hype das células-tronco", acusa. "Vemos cientistas emitindo press-releases sobre pacientes que se levantam de cadeiras de rodas e saem andando. Eles soam exatamente como as clínicas".

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