De Robert Wise a Justin Lin

Sou um fã inveterado de Star Trek - The Motion Picture, o filme de 1979 dirigido por Robert Wise, um dos grandes gênios subestimados de Hollywood, autor dos dois melhores filmes de terror da história (Desafio do Além, baseado em romance de Shirley Jackson, e O Túmulo Vazio, inspirado em conto de R.L. Stevenson). Gosto principalmente da "versão do diretor" de 2002, relançada com os efeitos especiais recriados em computador. Cada vez que revejo esse filme, aprecio-o mais; a continuar assim, até o fim da década ele terá entrado na minha lista dos dez favoritos de todos os tempos.

Aliás, revi The Motion Picture na última quinta-feira, numa espécie de preparação para encarar Jornada nas Estrelas - Sem Fronteiras, de Justin Lin, na sexta. Para ver como as coisas mudam: quase quarenta anos atrás, muita gente que gostava da franquia Jornada nas Estrelas criticou o filme de Wise, por considerá-lo "parado" ou "cerebral" demais. Agora, muita gente que gosta da franquia critica o filme de Lin por considerá-lo "descerebrado" e "movimentado" demais.

(Aviso para quem liga pra esse tipo de coisa: a partir deste ponto o artigo trará comentários que podem vir a ser interpretados como leves spoilers de ambos os filmes)

De minha parte, ainda gosto mais do filme de Robert Wise, mas saí bem satisfeito da exibição de Justin Lin. Ambas as obras -- assim como os dois filmes anteriores dirigidos por J.J. Abrams, aliás -- são, quintessencialmente, Star Trek, no sentido de me proporcionarem emoções, experiências e valores que estão dentro da paleta que espero quando vejo um produto narrativo -- filme, livro, HQ -- com essa marca.

Primeiro, falando de valores: Star Trek nasceu como um veículo para a confiança na humanidade, na diplomacia, no respeito à diversidade; e no poder poético e emotivo da curiosidade e do senso de descoberta, poder esse que é realçado, não sufocado, pelos métodos e processos da investigação científica.

Tanto o filme de Wise quando o de Lin trazem isso: em The Motion Picture, a reação da humanidade à aproximação de V'Ger, uma força desconhecida e destrutiva, não é de ira, terror e retaliação (mesmo após a estação espacial Epsilon IX ter sido destruída), mas de curiosidade e cautelosa aceitação; em Sem Fronteiras, a troca do guerreiro pelo cientista-explorador, na definição do arquétipo do herói, cumpre um papel idêntico.

Agora, falando em emoções e experiências: em Star Trek eu espero "puzzle" com uma solução racional, o oficial de comando pronto a tomar decisões difíceis assumindo plena responsabilidade pelas consequências, o sense of wonder -- uma tecnologia, uma ideia, um conceito de tirar o fôlego -- e o comentário social. De novo, ambos os filmes entregam a encomenda, talvez com um déficit de comentário social no de Wise, e com o sense of wonder do de Lin dependendo, em excesso, de fatores visuais, em detrimento de ideias e conceitos.

O filme de Wise é "parado", o de Lin é "corrido", mas ambos são grandes veículos para a bagagem que constitui Star Trek. Estou introduzindo essa conversa de "bagagem" e "veículo" de propósito: é para apresentar uma pequena especulação minha a respeito de por quê há tanta rejeição, entre os fãs mais antigos, ao universo criado para abrigar a nova safra de filmes, inaugurada pelo Star Trek de J.J. Abrams, e tanto apreço por coisas como Axanar, um projeto de filme amador que pretende recriar uma grande batalha da história da Federação dos Planetas Unidos, a principal unidade política do universo de Jornada nas Estrelas. Minha especulação é a seguinte: muitos dos fãs antigos se apaixonaram de tal forma pelo veículo que esqueceram a bagagem.

Falando em Axanar: sério? um filme de Star Trek sobre uma batalha? Manobras militares? Reduzir um universo de aspirações humanistas, movido a curiosidade e convivência na diversidade, à versão para YouTube de um wargame de tabuleiro? Isso é mais fiel ao espírito original da franquia que o Kirk de Além de Escuridão, recusando-se a obedecer à ordem para executar extrajudicialmente o vilão Khan?

Resumindo o argumento: a série cinematográfica atual tem, é claro, altos e baixos, roteiros com buracos aqui e ali, incluindo algumas crateras, uma preferência irritantemente juvenil pela ação em detrimento da exposição, mas ainda assim faz um grande trabalho em preservar a bagagem.

Todo o "novo" universo criado para os filmes mais recentes parece ter sido planejado para responder à seguinte pergunta: como a utopia tolerante, curiosa e vibrante imaginada por Gene Roddenberry nos anos 60 teria sido afetada por eventos "tipo 11 de Setembro" -- no caso, a emergência da nave romulana Narada e a destruição do planeta Vulcano. O que se vê nos novos filmes é que, a despeito de alguns percalços, a humanidade -- a Federação, que inclui mais que a humanidade -- foi capaz de manter o rumo. Exploradores, não guerreiros. Curiosidade, não rancor. Isso sim é a quintessência de Star Trek. De Wise a Lin.

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