"Fosfo" em SP, Homeopatia no CNPq


Em meio a um cenário de penúria generalizada no setor público, que atinge de modo especialmente grave os recursos para educação e pesquisa, o governo do Estado de São Paulo -- comandado por aquela mesma figura que acusou a agência estadual de fomento à ciência de jogar dinheiro fora com bobagens -- insiste em dar prosseguimento aos testes da tal "fosfoetanolamina sintética", um pó branco de composição desconhecida, que já fracassou em diversos testes preliminares, cujo suposto mecanismo de ação viola tudo o que se descobriu sobre a biologia do câncer nos últimos 90 anos. Além disso, na última semana noticiou-se que seis de dez voluntários que se submeteram aos testes de segurança da "fosfo" tiveram de abandonar o ensaio, por conta da progressão da doença.

Da forma como foi divulgado, sem a devida contextualização, o avanço do câncer em 60% dos voluntários submetidos ao teste de segurança não significa muita coisa: afinal, o ensaio foi feito para avaliar se a droga não causa efeitos adversos, não para testar sua eficácia. E a amostra é muito pequena. Mas, encaixado em seu devido lugar no quebra-cabeça maior da "fosfo", o dado ajuda a compor um quadro de fazer gelar a medula. Basta lembrar as repetidas garantias de resultados milagrosos oferecidas pelos propositores da droga de São Carlos, garantias dadas em tom messiânico e muitas vezes acompanhadas da sugestão de que os pacientes deveriam abandonar os tratamentos convencionais.

Não há como deixar de considerar que o prosseguimento dos ensaios em seres humanos, dado o quadro maior, é um desperdício de dinheiro público e uma crueldade para com os voluntários envolvidos. Vejamos o contexto: para além das promessas mirabolantes e sem base científica, o fato é que os testes em laboratório e em animais, realizados sob patrocínio do finado Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), já não recomendavam o avanço para a fase de ensaios em humanos. O resultado da primeira fase de testes em humanos não sugere nenhum benefício que possa vir do avanço para etapas posteriores. Ainda assim, em vez de encerrar o programa e investir o dinheiro em pesquisas mais promissoras, o Estado avança. Por quê?

Uma explicação caridosa é a de que o governo paulista quer reunir o máximo de evidências científicas inquestionáveis para, então, ter as melhores chances de vir a público e enterrar de vez a histeria criada em torno da "pílula do câncer". Uma explicação cínica é de que se trata de mera demagogia e cálculo eleitoral. Frase atribuída -- erroneamente, aliás -- ao pensador francês Alexis de Tocqueville diz que uma república chega ao fim no momento em que os políticos percebem que o público pode ser subornado com dinheiro público. Tendo mais de 16 anos, os discípulos da "fosfo" também podem votar.

Cargo Cult Science

Já na esfera federal, o CNPq, que alega não ter dinheiro nem para pagar mirradas bolsas a estudantes de iniciação científica, encontrou R$ 400 mil para investir em pesquisa sobre homeopatia.Se fosse pesquisa sobre a eficácia da homeopatia poderia ser algo de interesse científico, ainda que meio redundante (a revista Lancet, por exemplo, deu a questão como fechada 11 anos atrás), algo intelectualmente estimulante como uma nova prova de que a Terra gira em torno do Sol ou uma nova demonstração do Teorema de Pitágoras. Mas não é disso que se trata.

De fato, o edital promete dinheiro para o trabalho de caracterização de matérias-primas e preparados homeopáticos. A caracterização dos insumos tem alguma semelhança com pesquisa científica de verdade, mas as "formas homeopáticas derivadas" citadas do edital são, suponho, vidrinhos contendo água, que esteve em contato com água, que esteve em contato com água, que esteve em contato com uma molécula de alguma coisa uma centena de iterações atrás. É a análise da potência medicinal da pura água destilada.

O edital inteiro -- com suas exigências de testes estatísticos, validações múltiplas, condições analíticas, cálculos -- é um exemplo magistral de "cargo cult science" ou de "tooth fairy science": aquele momento em que a forma e as ferramentas da ciência (jalecos, equipamentos, planilhas, títulos acadêmicos) tornam-se mais importantes do que a substância do empreendimento científico, que é a busca da verdade sobre a natureza.

Seria fascinante, de um ponto de vista antropológico,  se não fosse com o dinheiro público que, segundo se diz por aí, anda tão escasso.

Comentários

  1. "...algo intelectualmente estimulante como uma nova prova de que a Terra gira em torno do Sol ou uma nova demonstração do Teorema de Pitágoras.". Eu ri mas a vontade era de chorar.

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