Profunditudes e o mundo "pós-verdade"

"Profunditude" é minha tradução pessoal para o neologismo da língua inglesa deepity, usado pelo filósofo Daniel Dennett para se referir a frases e expressões que têm dois sentidos: um verdadeiro e banal e outro supostamente profundo, mas falso. Resumindo, a profunditute só é verdadeira na medida em que diz algo trivial ao ponto da irrelevância; quando se tenta ler algo de relevante nela, torna-se falsa. Parece complicado? Talvez alguns exemplos ajudem: pense, por exemplo, naquela velha pérola da autoajuda, encruzilhada da espiritualidade prêt-à-porter com a Lei da Atração, "pensamentos são coisas materiais".

Na medida em que pensamentos são mudanças eletroquímicas que ocorrem no cérebro, trata-se de uma afirmação perfeitamente verdadeira: afinal, processos eletroquímicos são eventos do mundo material. Nesse nível, a afirmação é a mera constatação de uma banalidade. Mas, claro, quem usa a frase não está, na maioria das vezes -- perdão --, pensando nesse sentido: o que a pessoa quer dizer é que pensamentos, por si sós, são capazes de causar mudanças no mundo externo ao corpo de quem pensa. Afinal, coisas que transformam o mundo, como meteoros, vulcões e tsunamis, são materiais. Se o pensamento também é, abracadabra! Nesse nível, não-banal, a afirmação é escandalosamente falsa.

A profunditude é parente próxima da bullshit ("falação de merda"), categoria definida formalmente por outro filósofo, Harry Frankfurt, como a afirmação que é indiferente à verdade -- algo que se diz para produzir uma reação emocional ou um comportamento desejado no ouvinte, sem que o emissor se importe se o que está dizendo corresponde ou não aos fatos. A bullshit pode até ser verdade, mas quem a emprega não está nem aí para isso: o que se deseja é que o alvo vote em alguém, compre alguma coisa, indigne-se com isto ou aquilo ou abrace uma causa. Um estudo psicológico sobre o assunto ganhou o IgNobel este ano.

Exemplo clássico de bullshit é a velha anedota de que, enquanto os americanos gastaram milhões de dólares para inventar uma caneta esferográfica que funcionasse em gravidade zero, os russos usavam lápis no espaço: quem a emprega não está nem aí para o fato de que o conto é demonstravelmente falso. Quer apenas estimular alguma ideias tolinhas sobre uma suposta relação entre criatividade e simplicidade.

Nas últimas semanas, os fenômenos da bullshit e da profunditude viram-se lançados no âmago das discussões sobre o nosso momento histórico. Analisando eventos como a campanha eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos e a campanha bem-sucedida pelo Brexit, comentaristas como este articulista do New York Times expressam o temor de que tenhamos entrado num "mundo pós-verdade".

Nesse mundo, o respeito aos fatos e aos dados devidamente checados teria deixado de ser relevante no debate público: as pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer bobagem que lhes confirme os preconceitos. Não têm mais paciência para ouvir os esclarecimentos e as admoestações de especialistas que sabem do que estão falando e, no limite, sequer para analisar a evidência dos próprios olhos. Trazendo o assunto para mais perto de casa, as críticas à redução da velocidade nas vias marginais da capital paulista são um claro fenômeno de uma sociedade pós-verdade.Talvez possamos somar a eleição de João Doria à lista de sinais dos tempos?

Mas nem todos estão convencidos. A ideia de que o debate público encontra-se numa fase "pós-verdade" foi duramente contestada nas páginas do jornal britânico The Guardian em pelo menos dois artigos, um deles de autoria de Tracey Brown, diretora da ONG de divulgação científica Sense About Science. A questão de se a humanidade (ou a civilização ocidental, ao menos) entrou numa era de "pós-verdade" é especialmente delicada para quem trabalha com comunicação pública da ciência: afinal, se a verdade objetiva e a palavra dos estudiosos não valem mais nada na hora de se formular políticas públicas, a ciência tende a desaparecer do debate político.

"A pressa em acreditar que as pessoas não ligam para fatos e evidências já chegou aos círculos profissionais e políticos, e influencia uma reflexão de como fazer comunicação com o público", escreve ela. "Sem dúvida algum marketeiro das eleições de 2020 já está escrevendo planos para como ganhar um eleitorado pós-verdade". Remando contra a corrente, ela cita uma pesquisa realizada no Reino Unido que mostra que 85% do público britânico quer que o governo ouça especialistas antes de tomar decisões complexas, e 83% querem que o governo decida com base em evidências objetivas.

A ideia de que o público em geral atingiu um estágio "pós-verdade", prossegue Brown, "bajula a timidez e o populismo fácil". "Sim, as pessoas respondem a slogan e à emoção. Funciona com a maioria de nós. Mas os políticos e comunicadores que insistem que isso significa que o público não deseja ser informado arriscam-se a nos levar a uma sociedade de dois estamentos -- uma sociedade em que a evidência é debatida nos corredores do poder, nos gabinetes dos deputados e nos clubes da alta sociedade, enquanto que, em público, os líderes jogam para a galera ou se escondem". Uma sociedade "pós-verdade", baseada na ideia de que o povo só quer e só aceita profunditudes e bullshit, é elitista e odiosa, conclui.

Em seu livro The Poet and the Lunatics, o escritor G.K. Chesterton conta como o poeta Gabriel Gale curou um jovem neurótico que acreditava ser deus: amarrou-o a uma árvore, e prendeu sua cabeça ao tronco com um par de ancinhos. O louco passou uma noite inteira lá, atado ao tronco e com o pescoço imobilizado entre os dentes dos ancinhos. Pela manhã, suas ilusões de onipotência tinham se dissipado. Uma sociedade pós-verdade é uma que, cedo ou tarde, terá seu encontro com corda e ancinhos.

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