Lições dos deuses astronautas
Minha fé na humanidade sofreu um novo abalo neste fim de semana. E não estou me referindo ao resultado do segundo turno das eleições municipais brasileiras, mas sim à realização, na Califórnia, da primeira AlienCon, a convenção anual de fãs do programa de TV Alienígenas do Passado. Para quem não está ligando o nome à pessoa, trata-se daquela série interminável do History Channel sobre como este ou aquele artefato arqueológico, mito antigo ou evento histórico representa um sinal de interferência de civilizações alienígenas nos caminhos da humanidade.
A noção de "alienígenas do passado" ou "deuses astronautas" tem uma história relativamente curta -- data do início do último século -- mas convoluta. As primeiras especulações a respeito costumam ser atribuídas ao jornalista americano Charles Fort, de onde foram incorporadas à ficção de HP Lovecraft, que por sua vez teve seu trabalho reaproveitado como "não-ficção" na obra francesa O Despertar dos Mágicos, que acabou inspirando Erich von Däniken e seu atroz Eram os Deuses Astronautas?. A obra de Von Däniken, por sua vez, acabou gerando toda uma indústria, da qual a AlienCon é apenas a manifestação mais recente.
Há algo de didático nas apresentações das teorias sobre alienígenas do passado, ainda que tendam a se tornar tediosas pela repetição. Tratem elas das Linhas de Nasca, do Mapa de Piri Reis, de bombas atômicas na Índia antiga ou discos voadores bíblicos, todas partem do mesmo erro -- o de tentar encaixar o passado num esquema de referências ancorado na imaginação e no repertório disponível no presente: o fato de uma imagem evocar uma nave espacial ou um astronauta quando vista com os olhos de hoje não implica que ela tivesse o mesmo referente séculos atrás.
Um caso típico aparece no exemplo ao lado, em que uma pintura rupestre pré-histórica encontrada na Itália se deixa confundir, com um pouco de imaginação, com uma ilustração de astronautas do tipo visto nas histórias em quadrinhos de meados do século 20.
Se levada a sério, a "semelhança" exigiria uma explicação para o fato de alienígenas avançadíssimos usarem uma tecnologia análoga à imaginada por desenhistas como Mac Raboy.
Um exemplo diverso do mesmo efeito de descontextualização por anacronismo é o das imagens de "viajantes do tempo" falando em telefones celulares que volta e meia são encontradas em filmes antigos, mas que na verdade mostram pessoas da época usando um tipo primitivo de aparelho de surdez.
Outro ponto de didatismo involuntário que surge da AlienCon é esta entrevista com o criador do programa Alienígenas do Passado, Kevin Burns, em que ele defende o, digamos, "padrão jornalístico" de seu produto. Diz ele:
"Talvez haja pseudociência apresentada por alguns dos teoristas. Não há dúvida de que algumas das teorias apresentadas pelos entrevistados são, mesmo para mim, forçadas, Ou, não sei se são verdadeiras. Eles acreditam que sejam verdadeiras. Permito que nossos apresentadores falem com base em suas próprias pesquisas, suas próprias observações e suas próprias crenças. Aceito a palavra deles. Tudo o que dizemos é que "se isso é verdade, então aquilo também pode ser". Trabalho duro, junto com os produtores do show, para garantir que o narrador nunca diga nada que não seja absolutamente factual. Por exemplo, se a narração diz que um fato ocorreu em 1923, ele aconteceu em 1923. Se ele diz que a ciência oficial acredita em X, então a ciência oficial acredita em X."
Existem umas duas ou três teses de doutorado em Comunicação Social e ética jornalística encapsuladas no parágrafo acima. Uma delas mostra como a diferença entre o espetáculo pseudocientífico e o jornalismo dito "sério" é diminuta.
Nada do que Burns defende em sua fala estaria fora de lugar numa grande redação contemporânea. A ideia de que a busca objetiva da verdade pode ser substituída pela mera crença na "sinceridade" das fontes; a alegação de que a ênfase numa espécie de precisão mecânica -- "se dizemos 1923, foi 1923" -- permite que se cometam imprecisões de contexto ("se isso é verdade, então aquilo também pode ser") muito mais graves; a certeza de que é correto lavar as mãos quanto à qualidade e acuidade do conteúdo veiculado, em nome da liberdade de opinião ("Permito que nossos apresentadores falem com base em suas próprias pesquisas, suas próprias observações e suas próprias crenças") são todos padrões encastelados na mídia em geral.
No fim, Alienígenas do Passado é apenas uma extensão lógica do bom e velho jornalismo declaratório a que estamos todos acostumados.
Comentários
Postar um comentário