Leitura sensível e umas coisinhas mais



Costumo não escrever muito sobre literatura. Acho que a melhor forma de mostrar como acho que se deve escrever ficção é aplicando minhas crenças e idiossincrasias à minha obra, não dando palpite no que os outros fazem. Mas essa polêmica toda em torno da questão da "leitura sensível" (também aqui) acabou tangenciando alguns temas que me são caros, então lá vou eu fazer o que não devia.

Pelo que depreendi, esse tipo de trabalho, em que um texto é submetido, pré-publicação, a um leitor crítico identificado com um grupo social minoritário que analisará o conteúdo vis-a-vis as sensibilidades particulares do grupo,  pode cumprir uma de duas funções, ou ambas: orientar o method writer -- aquele que, como os atores "de método", faz  questão de conhecer, entender e sentir "na pele" um assunto antes de retratá-lo na ficção -- ou alertar o autor para o uso de palavras, expressões, situações, etc., consideradas ofensivas pelo grupo a que o "leitor sensível" pertence.

Quanto aos method writers: cada um na sua, claro. Pesquisar um tema exaustivamente antes de retratá-lo numa obra de ficção é um processo que funciona para algumas pessoas e algumas obras, mas não para todas. Aliás, durante décadas, a exaltação do method writing não passou de uma manobra diversionista para livrar a cara de autores medíocres de best-sellers. Ah, este romance de duas mil páginas sobre a mocinha pobre que se deixa seduzir por um magnata inescrupuloso, é abandonada pelo noivo hipócrita e expulsa de casa pelo pai puritano, mas depois se reergue da sarjeta, conquista a fama, fortuna e vingança pode ser  um monte de estrume, mas o autor pesquisou o cardápio de todos os restaurantes citados. E daí?

No polo oposto, é curioso lembrar que Arthur Conan Doyle escreveu as primeiras histórias de Sherlock Holmes antes de conhecer Londres direito, e que Estrela de Prata (Silver Blaze), unanimemente considerado um dos dez melhores contos do Grande Detetive, revela uma ignorância abissal das regras mais básicas do turfe -- embora o conto trate, exatamente, de uma fraude em corridas de cavalos. Em suas memórias, Conan Doyle reconhece a validade das inúmeras críticas recebidas, admite que escreveu sem fazer a menor ideia do que estava falando, mas jamais revisou o conto. E por que revisaria? Como peça de ficção, era (ainda é) um exercício dos mais brilhantes.

"Ele pesquisou a fundo" tem alguma relação com a qualidade de teses acadêmicas, mas quando se trata de ficção, geralmente não passa de cortina de fumaça.

Quanto à sensibilidade das minorias, vamos fazer um paralelo: se um autor é católico fervoroso e, para a paz de sua consciência, quer mostrar o texto a seu padre confessor antes de publicá-lo, para garantir que não vai ofender a fé sem querer, é direito dele. Do mesmo modo, se o autor é encanado com a questão da representatividade de minorias e quer submeter o texto dele a um leitor sensível pra evitar ofender, etc., também é um direito dele. Se a editora quer evitar publicar coisas que vão gerar má publicidade lá na frente, é direito dela. O problema, então, ao menos do meu ponto de vista, não está no quê. Está no como. Veja o título da Folha de S. Paulo sobre o assunto:



Aí já não é mais "o autor". É "o mercado". O que gera toda um salseiro de questionamentos. A história está repleta de coisas que eram "livre opção" no papel e, uma vez normalizadas no mercado, viraram "obrigações" de fato. No mundo da cultura, há os exemplos clássicos do Código Hays da produção cinematográfica, e do Comics Code, que pôs fim à explosão de criatividade dos quadrinhos americanos dos anos 50. O Comics Code, aliás, foi adotado com a melhor das intenções: proteger as criancinhas.

Ambos os códigos foram iniciativas "do mercado", adotadas por agentes livres, que estavam no pleno gozo de seus direitos, sem nenhuma, ou com um mínimo, de coação estatal. O que não nos impede de reconhecer que tiveram um impacto extremamente negativo na qualidade e na criatividade de duas importantes indústrias. E de, diante do exemplo histórico, ficarmos ressabiados ao ver que condições semelhantes começam a surgir: todo o movimento que desaguou no Comics Code teve início, exatamente, com preocupações de "sensibilidade" (no caso, dos pais) que afetavam o mercado.

Alguém pode apontar que as editoras sempre se valeram de pareceristas, pessoas que leem originais, opinam sobre se é oportuno, ou não, publicá-los e, eventualmente, sugerem modos de melhorar o texto. O "leitor sensível" surge como uma categoria especializada de parecerista. O problema é que seus critérios são, no limite, extraliterários, o que não deixa de ter um sabor de Comics Code ou, mesmo, de censura. Ah, os editores também seguem critérios de potencial de venda, que já são extraliterários. Verdade. Mas, e aí? Como se um critério sem correlação direta com a qualidade da obra já não fosse ruim o bastante, queremos mais outro, é isso?

Comentários

  1. Olá Orsi,

    depois de ler seu texto, fiquei pensando se essa prática da 'leitura sensível' existisse antes, será que teríamos textos como o tão famoso 'Guerra dos Tronos', do George R. R. (insira quantos 'Rs' forem precisos, hehe) Martin? O livro, querendo ou não, é cheio de pornografia, submissão feminina (embora existam personagens femininos fortes), assassinatos e até mesmo incita a pedofilia (faz tempo que li mas uma das personagens acaba casando e tendo relações sendo menor de idade).

    Naturalmente o livro é todo construído em um pensamento medieval e coisas desse tipo ocorriam. Mas será que a crítica atual, caso o livro saísse hoje, aceitaria o livro da mesma forma?

    Abraços e parebéns pelo trabalho, adoro seus textos. =D

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