As ondas da ficção científica nacional
Entre 1989 e 2013, mais ou menos, escrevi muita ficção científica: às vezes, chegava a produzir um conto por mês. Como, de acordo com as leis da probabilidade, quem atira muito na direção do alvo tende a acabar acertando de vez em quando, parte desse material prestou um pouco -- o suficiente para que eu ganhasse dois Prêmios Argos e, agora, tivesse um conto incluído no livro Fractais Tropicais -- Os Melhor da Ficção Científica Brasileira, organizado por Nelson de Oliveira, e que deve ser lançado no próximo semestre pela SESI Editora (estudei da 1ª à 8ª série num SESI, a propósito; fico imaginando que minhas professoras de então achariam disso).
O escopo de Fractais Tropicais é, para dizer o mínimo, ambicioso: cobre 30 autores e um período de cerca de 70 anos, de Jerônymo Monteiro (o primeiro escritor brasileiro a se dedicar seriamente à produção de ficção científica, ativo a partir do final da década de 30 do século passado) a Cristina Lasaitis, jovem autora que estreou já neste século.
Para dar alguma ordem ao conjunto, o organizador seguiu a tradicional periodização da ficção científica nacional em "ondas": após o pioneirismo de Monteiro, a "primeira onda" se articula, nos anos 60, em torno do editor baiano Gumercindo Rocha Dórea; a segunda, nos anos 80-90, em torno de fanzines e, depois, da edição brasileira da Isaac Asimov Magazine; e a terceira, atual, impulsionada principalmente pela Editora Draco, de Erick Santos, e pelas mídias online.
Cada "onda" representa um momento de efervescência em termos de produção e publicação, e um senso de otimismo, de que "agora a coisa vai" -- de que escrever ficção científica no Brasil é uma escolha estética, literária e (quiçá) comercial viável.
Costumo brincar que, em vez de "ondas", esses períodos deveriam ser chamados de eras geológicas: porque minha impressão é de que cada nova "onda" surge depois que anterior foi destruída por um cataclismo, soterrada e esquecida. Cada nova que geração contempla a paisagem da ficção científica brasileira e não vê alicerces deixados por quem passou lá antes, bases sobre as quais construir, mas apenas terra arrasada ou solo virgem.
Isso foi, certamente, verdade na transição da primeira onda para a segunda: porque não houve transição, mas um corte abrupto e um hiato. A segunda onda não deu continuidade à primeira, mas a redescobriu -- e não há continuidade clara entre elas. Entre a segunda e a terceira talvez se possa falar em transição, mas para mim não está muito claro se o que eu e meus colegas escrevemos ou escrevíamos tem algum valor, ou significa algo, para quem começou dez, vinte anos depois de nós.
O que se deve, em parte, ao fato de que a ficção científica é um gênero midiático e de forte penetração estrangeira. Um sujeito pode resolver ser escritor porque se impressionou com Graciliano Ramos, mas provavelmente não vai resolver ser escritor de ficção científica porque leu Carlos Orsi, mas sim porque leu gibis das Marvel ou assistiu a Star Wars. Ou, se sua paixão pelo gênero veio mesmo pela via da literatura, ela foi quase com certeza inspirada por Philip K. Dick, Isaac Asimov ou Ursula K. Le Guin., não por Jerônymo Monteiro, Octavio Aragão ou Bráulio Tavares.
E essa iniciação via autores estrangeiros tem menos a ver com qualidade (mais sobre isso depois) do que com disponibilidade: ainda é muito mais fácil, nas livrarias, encontrar textos de ficção científica traduzidos para o português do que originais lusófonos. Essa baixa disponibilidade relativa é uma das causas, e também consequência, de um efeito que atinge a ficção científica brasileira e que deixa muita gente perplexa: a invisibilidade. É uma literatura que existe mas (quase) ninguém nota.
Muita saliva, cerveja e cafezinho já foram gastos debatendo as causas dessa "invisibilidade", mas a explicação costuma virar em torno de dois focos, o da qualidade e o da cegueira institucional.
Quem argumenta pela via da qualidade responsabiliza diretamente a produção: vocês escrevem mal, escrevem bobagem, é claro que ninguém nota. Quem argumenta pela via da cegueira institucional culpa a recepção: basicamente, o sistema literário brasileiro -- imprensa especializada, academia, grandes editoras -- não sabe o que fazer, como classificar, como vender, a ficção científica nacional; ela não cabe nos escaninhos mentais predefinidos das faculdades de Letras, dos departamentos editoriais, dos cadernos de cultura. Então, finge-se que ela não existe.
O problema do argumento de qualidade é que ele traz, como corolário, o pressuposto de que a literatura que se faz notar, então, é aquela que tem qualidade. O que é um evidente despropósito. Um sistema literário crítico-editorial que leva a sério os romances de Jô Soares, dedica páginas inteiras às opiniões de Paulo Coelho ou entra em raptos de êxtase diante de um gimmick tão primário quanto "autoficção" não tem desculpa para ignorar a produção de Tavares ou Lasaitis, para ficar em dois casos especialmente emblemáticos.
O que nos deixa com a hipótese da cegueira institucional. Trabalhos como Fractais Tropicais são tentativas de curá-la. Houve esforços anteriores, vários, mas talvez nenhum de tamanho escopo. O fato de o organizador, Nelson de Oliveira, ser um insider do sistema também ajuda. Principalmente pelo pessoal da chamada Terceira Onda, espero que funcione. E que agora, realmente, a coisa vá.
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