Não, Virgínia, a ciência não encontrou provas de precognição
Confesso que desde novembro do ano passado eu vinha esperando algum veículo da imprensa brasileira resolver divulgar, de forma sensacionalista, o artigo "Feeling the Future: Experimental Evidence for Anomalous Retroactive Influences on Cognition and Affect", de autoria do pesquisador Daryl Bem e que relata nove experimentos que testaram a capacidade humana de prever o futuro -- alguns dos quais, segundo o autor, obtiveram resultados positivos.
Com os meses passando e o relativo silênciosepulcral na mídia tupiniquim -- entre as exceções, houve um artigo bem ponderado e nada sensacionalista de Hélio Schawrtsman -- eu já estava quase começando a me sentir culpado por esperar o pior.
(Adendo: o iG publicou uma extensa entrevista com Daryl Bem em janeiro; e agora em março a revista Mente e Cérebro trouxe artigo a respeito. Isso é pra eu aprender a não fazer mais afirmações categóricas sobre o que saiu ou deixou de sair por aqui...)
Mas, confirmando o dito de H.L. Mencken, segundo o qual pensar mal dos outros pode ser um pecado, mas raramente será um erro, eis que neste domingo de carnaval encontro a IstoÉ nas bancas com a seguinte chamada de capa: Premonição Existe.
O tempora! O mores!
Não nego que o trabalho de Bem pudesse servir de pauta para uma boa reportagem -- uma que mencionasse, por exemplo, as críticas duras feitas por James Alcock aos métodos estatísticos utilizados, as ressalvas de Richard Wiseman à metodologia ou o fato de a mesma revista que publicou o trabalho de Bem ter trazido uma crítica à forma como o cientista analisou seus dados.
Nada disso, no entanto, aparece na IstoÉ: ali, os resultados do psicólogo americano simplesmente são usados como "gancho" -- isso é jargão jornalístico para "pretexto para estarmos tratando deste assunto exatamente agora" -- para apresentar números sem significado algum e partir para "relatos humanos" de "casos reais" de precognição.
A matéria diz que "segundo o trabalho realizado em 2008 na Universidade de São Paulo, 71,5% relataram premonição através de sonhos". Mesmo descontando a óbvia possibilidade de "retrofiting" -- a pessoa ter um sonho qualquer e, depois de um evento ocorrer, vir a interpretá-lo arbitrariamente como premonitório -- o dado só teria valor se fosse comparado ao número de sonhos que essas mesmas pessoas tiveram sobre o futuro e que não se concretizaram. Eu mesmo, uns dias antes de me casar, sonhei que entrava pelado na igreja. Essa premonição, felizmente, não se cumpriu.
Descrever em detalhe os nove estudos realizados por Daryl Bem seria uma tarefa enorme (quem quiser conhecer as minúcias pode se divertir com a análise caso-a-caso feita por James Alcock, linkada acima), mas apenas para dar uma noção do sabor geral, vou resumir um dos trabalhos.
Nele, voluntários viram uma série de palavras aparecerem numa tela de computador, e depois tiveram de digitar as de que se lembravam.
O computador em seguida selecionou parte das palavras apresentadas originalmente. Se os voluntários tivessem se lembrado de mais palavras que viriam a constar da lista selecionada, considerou-se que tivessem sido capazes de prever a ação da máquina. Como Wiseman notou, esse estudo tem uma vulnerabilidade fundamental: a correção dos erros de digitação. Por exemplo, se o computador apresentou a palavra "CAR" e o voluntário digitou "CAT", isso é um erro de digitação, ou o voluntário confundiu as palavras?
(Bem respondeu a essa crítica dizendo que o fator de correção pode ser ignorado em tentativas de replicar o experimento.)
Outro experimento, que concluiu que as pessoas têm capacidade de prever quando e onde uma imagem erótica será exibida, tem um protocolo tão confuso que, a despeito do interesse intrínseco, não vou me dar ao trabalho de apresentar aqui.
Por fim, como é bem notado no Skeptic's Dictionary, mesmo se os experimentos de Bem tivessem sido metodologicamente inatacáveis, estatisticamente perfeitos e executados sem falhas -- a parapsicologia tem uma longa história de experiências que parecem perfeitas no papel, mas de execução relaxada -- a única coisa que eles teriam demonstrado seria uma série de anomalias estatísticas: coisas que aconteceram com mais (ou menos) frequência do que se esperava.
Restaria ainda, portanto, a tarefa de determinar o que teria causado anomalia. Para afirmar com confiança que ela foi provocada por precognição ou premonição, seria preciso replicar os resultados dos estudos diversas vezes, de forma independente e com controles estritos.
Tentativas de replicação estão em andamento, mas os resultados não estão parecendo nada promissores. Portanto, não vá contando com o jogo do bicho para pagar as contas. A ciência, a despeito do que andam dizendo por aí, não recomenda.
Com os meses passando e o relativo silêncio
(Adendo: o iG publicou uma extensa entrevista com Daryl Bem em janeiro; e agora em março a revista Mente e Cérebro trouxe artigo a respeito. Isso é pra eu aprender a não fazer mais afirmações categóricas sobre o que saiu ou deixou de sair por aqui...)
Mas, confirmando o dito de H.L. Mencken, segundo o qual pensar mal dos outros pode ser um pecado, mas raramente será um erro, eis que neste domingo de carnaval encontro a IstoÉ nas bancas com a seguinte chamada de capa: Premonição Existe.
O tempora! O mores!
Não nego que o trabalho de Bem pudesse servir de pauta para uma boa reportagem -- uma que mencionasse, por exemplo, as críticas duras feitas por James Alcock aos métodos estatísticos utilizados, as ressalvas de Richard Wiseman à metodologia ou o fato de a mesma revista que publicou o trabalho de Bem ter trazido uma crítica à forma como o cientista analisou seus dados.
Nada disso, no entanto, aparece na IstoÉ: ali, os resultados do psicólogo americano simplesmente são usados como "gancho" -- isso é jargão jornalístico para "pretexto para estarmos tratando deste assunto exatamente agora" -- para apresentar números sem significado algum e partir para "relatos humanos" de "casos reais" de precognição.
A matéria diz que "segundo o trabalho realizado em 2008 na Universidade de São Paulo, 71,5% relataram premonição através de sonhos". Mesmo descontando a óbvia possibilidade de "retrofiting" -- a pessoa ter um sonho qualquer e, depois de um evento ocorrer, vir a interpretá-lo arbitrariamente como premonitório -- o dado só teria valor se fosse comparado ao número de sonhos que essas mesmas pessoas tiveram sobre o futuro e que não se concretizaram. Eu mesmo, uns dias antes de me casar, sonhei que entrava pelado na igreja. Essa premonição, felizmente, não se cumpriu.
Descrever em detalhe os nove estudos realizados por Daryl Bem seria uma tarefa enorme (quem quiser conhecer as minúcias pode se divertir com a análise caso-a-caso feita por James Alcock, linkada acima), mas apenas para dar uma noção do sabor geral, vou resumir um dos trabalhos.
Nele, voluntários viram uma série de palavras aparecerem numa tela de computador, e depois tiveram de digitar as de que se lembravam.
O computador em seguida selecionou parte das palavras apresentadas originalmente. Se os voluntários tivessem se lembrado de mais palavras que viriam a constar da lista selecionada, considerou-se que tivessem sido capazes de prever a ação da máquina. Como Wiseman notou, esse estudo tem uma vulnerabilidade fundamental: a correção dos erros de digitação. Por exemplo, se o computador apresentou a palavra "CAR" e o voluntário digitou "CAT", isso é um erro de digitação, ou o voluntário confundiu as palavras?
(Bem respondeu a essa crítica dizendo que o fator de correção pode ser ignorado em tentativas de replicar o experimento.)
Outro experimento, que concluiu que as pessoas têm capacidade de prever quando e onde uma imagem erótica será exibida, tem um protocolo tão confuso que, a despeito do interesse intrínseco, não vou me dar ao trabalho de apresentar aqui.
Por fim, como é bem notado no Skeptic's Dictionary, mesmo se os experimentos de Bem tivessem sido metodologicamente inatacáveis, estatisticamente perfeitos e executados sem falhas -- a parapsicologia tem uma longa história de experiências que parecem perfeitas no papel, mas de execução relaxada -- a única coisa que eles teriam demonstrado seria uma série de anomalias estatísticas: coisas que aconteceram com mais (ou menos) frequência do que se esperava.
Restaria ainda, portanto, a tarefa de determinar o que teria causado anomalia. Para afirmar com confiança que ela foi provocada por precognição ou premonição, seria preciso replicar os resultados dos estudos diversas vezes, de forma independente e com controles estritos.
Tentativas de replicação estão em andamento, mas os resultados não estão parecendo nada promissores. Portanto, não vá contando com o jogo do bicho para pagar as contas. A ciência, a despeito do que andam dizendo por aí, não recomenda.
Carlos:
ResponderExcluirNa verdade saiu um artigo a respeito na revista Mente e Cérebro no. 218 (março de 2011, este mês) de autoria de Sidarta Ribeiro, localizado na última página da edição.
Queria destacar o final do texto: A razão de tanto auê é que os achados, se confirmados, demandam uma nova física. (...) E se o tempo for mesmo retrocognitivo? Será que a psicologia vai revolucionar a física? Quem viver ... viu?
Oi, Rafael, muito obrigado pelo toque!
ResponderExcluirEu vi essa matéria da IstoÉ e fiquei infeliz do jeito que foi tratado o assunto. O assunto, como qualquer outro, deve ser tratado e investigado pela Ciência, mas o jeito como foi feita a pesquisa e sua divulgação pela revista acabou parecendo "segurem-se em suas cadeiras! 'Ciência' mostra que premonição existe!" UAU!!
ResponderExcluirTriste como uma revista respeitável que ajuda a formar opinião de muitas pessoas acabe fazendo isso...
Abraços...
Vi a matéria por cima na banca, mas já não esperava muito: não é a primeira vez que a Isto É pega uma crença e transforma em notícia.
ResponderExcluirO que me assustou foi terem usado um número tão insignificante: se 53% dos entrevistados acertaram como seria a próxima imagem, está muito mais próximo do chute somado ao erro estatístico do que a qualquer inferência válida.
O mais recente artigo sobre o assunto apoia a existência de precognição com vastas replicações de sucesso, de um total de 33 laboratórios diferentes localizados em 14 países com 12.406 participantes:
ResponderExcluirhttp://f1000research.com/articles/4-1188/v2