A pérola de Popper, o bule de Russell

Imagino que um bom lugar para começar seja com Karl Popper e seu critério da falseabilidade: a ideia de que, para ser digna de escrutínio científico, uma ideia ou hipótese precisa ser, ao menos em princípio, falseável: tem de haver pelo menos um resultado experimental que, se obtido, obrigaria, se não o abandono, ao menos uma profunda revisão da proposta inicial.

A falseabilidade está intimamente ligada à ideia de previsão: uma proposta científica deve ser capaz de prever os resultados de experimentos. Uma previsão errada é sinal de que os cientistas têm de cavar mais fundo. Entre as afirmações não-falseáveis, Popper incluiu as alegações estritas de existência.

Uma alegação estrita de existência é a afirmação de que alguma coisa existe, mas sem especificar onde, como ou de que forma.

O exemplo usado por Popper era a afirmação de que "existe uma pérola que é dez vezes maior que a pérola imediatamente menor". Explica ele: "Uma alegação estrita ou pura de existência aplica-se à totalidade do Universo, e é irrefutável, simplesmente, porque não há um método pelo qual possa ser refutada. Pois, mesmo se fôssemos capazes de realizar uma busca em todo o Universo, a alegação existencial pura ou estrita não teria sido refutada por nosso fracasso em achar a pérola exigida, já que ela pode, sempre, estar escondida no lugar para onde não estamos olhando".

Outros exemplos comumente citados são o bule de chá em órbita do Sol, de Bertand Russell, e o bolo de chocolate entre os anéis de Saturno,  de (se não me engano) Theodore Sturgeon.

Nos casos de Russell e Sturgeon, o domínio espacial definido é menor que a totalidade do Universo -- o sistema solar, a órbita de Saturno -- mas esses são volumes de espaço enormes na comparação com os objetos citados (um bule, um bolo), e dinâmicos o bastante para que a ressalva do filósofo -- "ela pode, sempre, estar escondida no lugar para onde não estamos olhando" -- seja válida.

 O bule o bolo, no entanto, não são geralmente invocados em argumentos sobre a demarcação da ciência, e sim em debates sobre o ônus da prova (se você diz que "X" existe, é sua obrigação me convencer disso). Mas esse argumento me parece ter uma camada ainda mais profunda, ligada à relevância e à honestidade intelectual.

O princípio é o de que uma afirmação que viole o critério popperiano não é apenas não-científica, mas também irrelevante, quando não de má-fé, em termos mais gerais.

(Ainda que não em termos absolutos: nada do que está escrito neste post se aplica à poesia, por exemplo, ou às consequências lógicas demonstráveis, ainda que inobserváveis, de teorias científicas honestas que já sobreviveram a diversos rounds de possível falsificação.)

Esse é um salto que algumas pessoas certamente classificariam, de forma depreciativa, como "cientificismo", mas pense: se meus sentidos -- ampliados pelos mais poderosos instrumentos da ciência -- não são, nem mesmo em princípio, capazes de dar uma resposta definitiva sobre a (ou, que seja, uma boa estimativa da probabilidade da) existência de uma certa entidade "X", qual a relevância, neste tempo e lugar, de tal entidade?

Talvez haja vida na galáxia de Andrômeda, digamos. Mas, a menos que algum tipo de contato seja estabelecido -- ou algum cálculo bem-fundamentado de probabilidade apareça --, que diferença isso faz? Em que a mera possibilidade, uma vez formulada sem qualquer outra qualificação, deve afetar as crenças e atitudes e nós, pobres criaturas sublunares?

Já o questionamento da honestidade intelectual surge quando há motivos para supor que a alegação estrita de existência está sendo usada com o fim definido de manter a verdade do caso fora da esfera da investigação racional.

Enfim, o uso do critério de falseabilidade de Popper como uma espécie de atalho heurístico para determinar se uma alegação sobre a existência de algo é relevante ou honesta me parece fazer todo o sentido. Deixo ao leitor mais curioso a tarefa de aplicar esse critério à defesa da misericórdia divina feita por Paulo na Carta aos Romanos.

Isso pode soar como uma versão mitigada do bom e velho positivismo lógico, que afirmava que toda alegação não verificável carece de sentido (e que acabou caindo em desgraça quando se percebeu que "toda alegação não verificável carece de sentido" é uma alegação não verificável). E talvez seja, mesmo.

Mas minha proposta é menos absoluta e pretensiosa que sua antecessora. Não pretende ser um juízo definitivo; apenas, uma bandeira vermelha -- ou um conselho amigável.

Comentários

  1. Resposta definitiva é algo q a ciência não pode dar. Especialmente sob o esquema popperiano.

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Pode dar, se a questão for bem formulada (ou, no meu paradigma, se for formulada de modo relevante e/ou honesto: por exemplo, "existem, neste momento, duas pérolas nesta caixa aqui, sendo que uma é dez vezes maior que a outra".

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  4. Nem. Toda medida tem um grau de incerteza. Além disso, toda conclusão depende de um silogismo que se baseia em um conjunto de premissas: explícitas e ocultas.

    Peguemos o exemplo das pérolas e, pra facilitar, aceitemos inicialmente que haja duas pérolas. Vamos pensar na afirmação de que uma é dez vezes maior do que a outra. (Vamos supor que se refira em termos volumétricos.)

    Você mergulha a primeira - a aparentemente menor - em uma proveta graduada com água dentro. A medição do volume deslocado dependerá, em parte, da correta leitura: o menisco terá que ficar na altura dos olhos, a proveta terá que ter sua base bem apoiada e na horizontal... e se baseia na linha inferior do menisco. Digamos que a graduação seja de 0,5 ml: há espaço convencionado de erro de 0,25 ml para mais e para menos na leitura correta. Digamos que lemos: 5,00+/-0,25 ml.

    Na outra lemos: 50,00+/-0,25 ml.

    Será a segunda maior dez vezes do que a primeira? Se a primeira tiver um valor 'real'(deixemos de lado a discussão sobre valor real por enqto) de 4,75 ml e a segunda de 50,25, não será um tamanho de 10 vezes.

    O intervalo de 0,25 ml é ainda convencionado como um intervalo de 95% de probabilidade. Há 5% de probabilidade de que o valor 'real' esteja acima ou abaixo do limite do intervalo.

    Ainda estamos supondo que a densidade da água não variou entre as duas medidas. Nem a intensidade do campo gravitacional. A rigor essas suposições são falsas já que há tanto flutuação térmica (sem falar em outras fontes mais relevantes - como a própria proximidade do corpo do observador) quanto variação do campo gravitacional (descartando novamente a massa do observador, alterações nas configurações de distribuição da massa, posição da Lua e outros corpos, etc.). Consideramos irrelevante e atribuímos uma variação pequena. Mas há probabilidade não nula de que não seja.

    []s,

    Roberto Takata

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  5. Seguindo o raciocício do Takata, não é possível provar absolutamente nada. Na verdade eu sequer posso saber se eu realmente existo ou se sou apenas uma alucinação de meu cérebro.

    Mas para os fins práticos, basta saber qual o grau de precisão desejada, e em nossa vida cotidiana fazemos isso o tempo todo.

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  6. Gostei do seu artigo. O que muitas vezes não percebemos é que, na minha opinião, o grande erro da Ciência é que ela desconsidera tudo que não pode provar. Esse é um extremo perigoso, porque há diversas coisas em que não há prova empírica, e há os casos que ela não faz diferença.
    Por exemplo: quando você se apaixona, há transformações químicas que teoricamente podem ser provas que você está apaixonado. Como despertar o mesmo sentimento por outra pessoa ou fazê-la sentir o mesmo é outra história. Moral da história: que diferença faz uma prova material e racional numa questão como essa?

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