Trânsito mata mais que a guerra do Iraque... e daí?


Mortes no trânsito per capita, via Wikipedia. Escala vai de 'menos de 5' a 'mais de 40'
Comparar a estatística de mortes causadas por acidentes de trânsito com o número de vidas perdidas em desastres de magnitudes várias já virou uma espécie de clichê: em Goldfinger, quando James Bond confronta o vilão com a monstruosidade que seria matar toda a população de uma pequena cidade apenas para abrir caminho para o saque de Fort Knox, o gênio do mal dá de ombros e diz que os motoristas americanos matam mais gente do que isso em um ano.

Ao contrário do insensível Auric Goldfinger, no entanto, a maioria das pessoas que buscam traçar paralelos entre a quantidade de vidas perdidas no trânsito e, por exemplo, em guerras, não pretende apresentar seus dados como uma forma de minimizar a tragédia, mas bem o oposto: mostrar como a imprudência ao volante pode provocar, num país em estado de paz, uma catástrofe comparável à  que atinge uma nação conflagrada. Nos últimos anos, dizer que "o trânsito no Brasil mata mais que a guerra do Iraque" virou quase um mantra. Mas o que isso significa, exatamente?

Em números absolutos, trata-se de uma verdade incontestável: de acordo com o Iraq Body Count, no ano mais sangrento da guerra, 2006, perderam a vida 29.026 pessoas no Iraque. No mesmo ano, o total de mortes no trânsito brasileiro foi de  36.367, informa o Mapa da Violência.

Agora, de novo: o que isso significa? A imagem mental evocada é, certamente, hedionda -- carros e motocicletas brasileiros deixando um rastro de corpos maior que o de carros-bomba e lançadores de granadas. Motoristas matando mais que soldados, guerrilheiros e terroristas. A sensação de que deve ser mais seguro ir ao mercado em Fallujah do que descer para a praia de Santos no feriado... Epa, peraí. Há algo estranho nisso. Ou não? Alguém realmente acha que a Serra do Mar é mais perigosa, mesmo no sábado de carnaval, do que o Triângulo Sunita era em, digamos, 2004?

O que está faltando nesse quadro é contexto, algum dado que permita ancorar os números absolutos numa compreensão mais completa da realidade. Por exemplo: as populações envolvidas. Em 2006, para voltar ao ano mais sangrento da guerra, o Iraque tinha cerca de 30 milhões de habitantes; o Brasil, 190 milhões. Fazendo as contas, naquele ano, o risco de um iraquiano morrer na guerra era cinco vezes maior que o de um brasileiro morrer no trânsito. De fato, no acumulado de 2003 a 2009, o risco de um cidadão iraquiano  morrer vítima de violência na guerra foi quatro vezes maior que o de um brasileiro se esborrachar numa rua ou estrada.

É bom notar que, mesmo postos em contexto, os números do Brasil não são nada animadores: se eu saio do meu país pacífico e vou para uma zona de guerra, minha expectativa seria de ver o risco de vida aumentar em dez ou doze vezes. Um aumento de apenas quatro ou cinco sugere que o lugar de onde saí não era tão pacífico assim, afinal.

Números absolutos têm valor de choque, mas o problema é que seu uso descontextualizado pode induzir ao erro e, no limite, é pura e simplesmente desonesto: por exemplo, deve ser verdade que mais mulheres são estupradas hoje em dia, no mundo, do que eram na Idade Média -- mas, antes de concluir que os direitos das mulheres sofreram uma aguda degradação no último meio milênio, lembre-se de que a população feminina do século XIII possivelmente equivalia a cerca de 6% da do mundo atual.

Esse tipo de manobra, a comparação de números absolutos vindos de contextos diversos, é algo em que jornalistas, principalmente, deveriam prestar mais atenção. E não embarcar em furadas apenas porque o número soa bem na manchete. Nem mesmo se a causa for boa e, por isso, a tentação, grande.

Comentários

  1. Olá Carlos, parabéns pelo texto. Simples e direto ao ponto.

    Obviamente, seguindo a ideia do texto, os números se tornariam mais díspares se levarmos em consideração a quantidade de soldados e 'rebeldes' no Iraque e a quantidade de pessoas habilitadas no Brasil, não é mesmo?

    Grande abraço...

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  2. Talvez, mas é preciso levar em conta que tanto o número de civis iraquianos quanto o de pedestres brasileiros tem alguma influência no resultado, já que entra no "pool" de vítimas em potencial...

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  3. Gostei muito da "ótica" trabalhada na abordagem do tema. Posso trabalhar o texto numa aula de redação?
    Prof. Nonato (Caxias-MA)

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  4. Alguns alegam que precisamos de educação no trânsito, mas esquecem da educação de base e, não estou falando de cultura, mas daquilo que deve se desenvolver no âmbito familiar desde a primeira infância.

    Obrigado pelas informações.

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