Natural, tradicional... e daí?
Informa-nos a Folha de S. Paulo de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estuda relaxar as regras para o licenciamento de produtos fitoterápicos: em vez de terem de comprovar cientificamente que são seguros e eficazes, os remédios baseados em plantas de "uso tradicional" teriam, apenas, de comprovar "segurança". Em outras palavras, para pôr um medicamento fitoterápico no mercado não seria mais necessário provar que ele funciona mas, apenas, que não é veneno -- ao menos, não na dose recomendada na bula.
Esse negócio de provar "segurança", mas não "eficácia", é a mesma brecha já explorada pelos vendedores de fórmulas herbais de emagrecimento que tanto colaboram com a receita publicitária das revistas femininas. Se você se der ao trabalho de ler as letrinhas miúdas no rodapé do anúncio, abaixo das pernas razoavelmente bem tornadas da obscura modelo-e-atriz em trajes de ginástica, elas dizem algo mais ou menos assim: "Este produto não é um medicamento. Sua eficácia não foi comprovada em estudos científicos". Que é exatamente o oposto do que o anúncio dá a entender. É de se imaginar por que as pessoas que fazem isso não vão procurar um trabalho mais honesto, tipo vender plutônio para a Al-Qaeda.
Agora, remédios em geral têm de provar que são seguros E eficazes por duas razões bem simples: para que as pessoas não morram ao tomá-los e para que as pessoas não sejam fraudadas pelos fabricantes. Ainda assim, mesmo com todas as salvaguardas científicas, volta e meia alguma coisa escapa, seja por erro, azar ou má-fé: o anti-inflamatório Vioxx é um exemplo recente.
Bem, enfim. Temos todo um sistema de salvaguardas montado para evitar que fabricantes inescrupulosos nos entupam de pílulas coloridas que não servem para nada (a menos, claro, que elas atendam pelo nome de "homeopatia", mas essa é outra história). Por que desmontá-lo, então, especificamente no caso dos fitoterápicos?
Um motivo, aliás citado no texto da Folha, é o de que muitos fitoterápicos têm "uso tradicional". Se a vovó recomenda chá de seiláoquê para prisão de ventre, e a vovó da vovó recomendava também, alguma coisa deve ter aí, não?
Bem, sim, talvez tenha. Mas, até aí, incontáveis gerações de vovós também diziam que lavar o cabelo durante a menstruação cegava, que masturbação fazia crescer pelo na palma da mão que misturar manga com leite traria resultados horríveis demais para se contemplar.
O chamado "conhecimento tradicional" pode ser um bom indicador de pontos de partida para pesquisa, mas se ele fosse suficiente -- se fosse realmente "conhecimento" -- a humanidade não teria se dado ao trabalho de inventar o método científico. Não se trata de desprezar a informação transmitida pela tradição, mas de buscar confirmá-la por métodos mais válidos e seguros dos que os que insistem que misturar manga com leite faz mal, ou que mulher menstruada jamais deve lavar os cabelos. E é exatamente desse passo, de confirmação, que agora se fala em abrir mão. Por quê?
Um outro motivo é a chamada "falácia naturalista": se vem da natureza, é bom. Isso ignora, claro, o fato de que vírus, bactérias e incontáveis venenos são, todos, produtos naturais. No caso de medicamentos fitoterápicos de uso tradicional, a questão torna-se ainda mais espinhosa, porque quem cai na falácia naturalista tende a ver esse tipo de produto como intrinsecamente "mais seguro" do que a versão sintética, o que é uma bobagem.
Uma molécula ativa é uma molécula ativa é uma molécula ativa, não importa se está na folha de uma planta ou num tubo de ensaio. Com o agravante de que, numa formulação fitoterápica, é mais difícil controlar a dose com precisão: é por isso que, ao menos segundo a Wikipedia, a digitalina deixou de ser usada como fitoterápico.
O terceiro motivo, possivelmente o mais forte, é econômico. Comprovar a segurança e a eficácia de um medicamento é um processo lento e custoso. A indústria farmacêutica -- e estou falando da grande indústria farmacêutica -- não cansa de se queixar disso. Levar uma molécula terapêutica ao mercado pode consumir décadas e custar milhões de dólares. Fazer testes em seres humanos representa um verdadeiro pesadelo ético e burocrático.
Nesse aspecto, os fitoterápicos teriam, sobre as novas moléculas sintéticas, a vantagem da tradição: uma planta usada há gerações para combater determinado sintoma pode ter mesmo alguma eficácia; e, mesmo se for só uma crendice, algo que não funciona, ora bolas, e daí? Pelo menos a pessoa tem o alívio psicológico de estar sendo tratada. Aqui, o que fica em relevo é a questão ética de alimentar esperanças de alívio que podem ser falsas e, no limite, de fazer o paciente pagar para ser enganado.
Existe um problema, muito real, envolvendo os custos e os prazos para a liberação de medicamentos. Esse problema não é só brasileiro, mas global. Entre as soluções propostas, há a de o Estado subsidiar parte dos testes clínicos, e também a de relaxar os critérios -- liberando, por exemplo, os medicamentos assim que forem considerados seguros, permitindo que entrem no mercado ao mesmo tempo em que ocorrem os testes finais de eficácia.
Mas este não é um problema exclusivo dos fitoterápicos, e não há motivo razoável para privilegiá-los no debate: no caso do relaxamento da prova de eficácia, se as plantas têm a tradição a seu favor, os medicamentos sintéticos têm os testes de laboratório e em animais. A decisão final é eticamente complexa nos dois casos.
Esse negócio de provar "segurança", mas não "eficácia", é a mesma brecha já explorada pelos vendedores de fórmulas herbais de emagrecimento que tanto colaboram com a receita publicitária das revistas femininas. Se você se der ao trabalho de ler as letrinhas miúdas no rodapé do anúncio, abaixo das pernas razoavelmente bem tornadas da obscura modelo-e-atriz em trajes de ginástica, elas dizem algo mais ou menos assim: "Este produto não é um medicamento. Sua eficácia não foi comprovada em estudos científicos". Que é exatamente o oposto do que o anúncio dá a entender. É de se imaginar por que as pessoas que fazem isso não vão procurar um trabalho mais honesto, tipo vender plutônio para a Al-Qaeda.
Agora, remédios em geral têm de provar que são seguros E eficazes por duas razões bem simples: para que as pessoas não morram ao tomá-los e para que as pessoas não sejam fraudadas pelos fabricantes. Ainda assim, mesmo com todas as salvaguardas científicas, volta e meia alguma coisa escapa, seja por erro, azar ou má-fé: o anti-inflamatório Vioxx é um exemplo recente.
Bem, enfim. Temos todo um sistema de salvaguardas montado para evitar que fabricantes inescrupulosos nos entupam de pílulas coloridas que não servem para nada (a menos, claro, que elas atendam pelo nome de "homeopatia", mas essa é outra história). Por que desmontá-lo, então, especificamente no caso dos fitoterápicos?
Um motivo, aliás citado no texto da Folha, é o de que muitos fitoterápicos têm "uso tradicional". Se a vovó recomenda chá de seiláoquê para prisão de ventre, e a vovó da vovó recomendava também, alguma coisa deve ter aí, não?
Bem, sim, talvez tenha. Mas, até aí, incontáveis gerações de vovós também diziam que lavar o cabelo durante a menstruação cegava, que masturbação fazia crescer pelo na palma da mão que misturar manga com leite traria resultados horríveis demais para se contemplar.
O chamado "conhecimento tradicional" pode ser um bom indicador de pontos de partida para pesquisa, mas se ele fosse suficiente -- se fosse realmente "conhecimento" -- a humanidade não teria se dado ao trabalho de inventar o método científico. Não se trata de desprezar a informação transmitida pela tradição, mas de buscar confirmá-la por métodos mais válidos e seguros dos que os que insistem que misturar manga com leite faz mal, ou que mulher menstruada jamais deve lavar os cabelos. E é exatamente desse passo, de confirmação, que agora se fala em abrir mão. Por quê?
Um outro motivo é a chamada "falácia naturalista": se vem da natureza, é bom. Isso ignora, claro, o fato de que vírus, bactérias e incontáveis venenos são, todos, produtos naturais. No caso de medicamentos fitoterápicos de uso tradicional, a questão torna-se ainda mais espinhosa, porque quem cai na falácia naturalista tende a ver esse tipo de produto como intrinsecamente "mais seguro" do que a versão sintética, o que é uma bobagem.
Uma molécula ativa é uma molécula ativa é uma molécula ativa, não importa se está na folha de uma planta ou num tubo de ensaio. Com o agravante de que, numa formulação fitoterápica, é mais difícil controlar a dose com precisão: é por isso que, ao menos segundo a Wikipedia, a digitalina deixou de ser usada como fitoterápico.
O terceiro motivo, possivelmente o mais forte, é econômico. Comprovar a segurança e a eficácia de um medicamento é um processo lento e custoso. A indústria farmacêutica -- e estou falando da grande indústria farmacêutica -- não cansa de se queixar disso. Levar uma molécula terapêutica ao mercado pode consumir décadas e custar milhões de dólares. Fazer testes em seres humanos representa um verdadeiro pesadelo ético e burocrático.
Nesse aspecto, os fitoterápicos teriam, sobre as novas moléculas sintéticas, a vantagem da tradição: uma planta usada há gerações para combater determinado sintoma pode ter mesmo alguma eficácia; e, mesmo se for só uma crendice, algo que não funciona, ora bolas, e daí? Pelo menos a pessoa tem o alívio psicológico de estar sendo tratada. Aqui, o que fica em relevo é a questão ética de alimentar esperanças de alívio que podem ser falsas e, no limite, de fazer o paciente pagar para ser enganado.
Existe um problema, muito real, envolvendo os custos e os prazos para a liberação de medicamentos. Esse problema não é só brasileiro, mas global. Entre as soluções propostas, há a de o Estado subsidiar parte dos testes clínicos, e também a de relaxar os critérios -- liberando, por exemplo, os medicamentos assim que forem considerados seguros, permitindo que entrem no mercado ao mesmo tempo em que ocorrem os testes finais de eficácia.
Mas este não é um problema exclusivo dos fitoterápicos, e não há motivo razoável para privilegiá-los no debate: no caso do relaxamento da prova de eficácia, se as plantas têm a tradição a seu favor, os medicamentos sintéticos têm os testes de laboratório e em animais. A decisão final é eticamente complexa nos dois casos.
É a oficialização do placebo...
ResponderExcluirPensando bem, até acho que para males menores, que ofereçam baixíssimo risco de vida (ops, agora é risco de morte, segundo a Globo), um placebo cairia bem. Não tem efeitos colaterais e a farinha está mais barata que muito principio ativo. Mas tem que ser sem glútem!
Que absurdo! Lendo isso só posso pensar no qual genial foi Carl Sagan e a sua luta contra a pseudo-ciência e no quanto somos todos tolos.
ResponderExcluirEssa idéia de que sendo natural não faz mal está enraizada em quase todas as camadas da sociedade de forma bem engraçada até. Eu só não podia imaginar que as autoridade iriam se valer dessa crendice para justificar uma determinação como essa
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