O exorcista acidental

Ao menos para quem, como eu, está olhando de fora, a fé religiosa, principalmente sob a forma de apego a uma tradição ou denominação específica, parece existir numa espécie de espectro contínuo que vai da pura superstição fundamentalista -- onde até mesmo cobras falantes são aceitas como fatos -- aos picos rarefeitos da teologia sofisticada, onde praticamente tudo se dissolve em um conjunto de metáforas mal-definidas que, como as mitologias de antigamente, embasam um certo modo de pensar e um senso de comunidade.

Também, aqui olhando de fora, vejo como as pessoas que estão num dos extremos da escala adorariam poder prescindir das que se encontram no outro; mas como, de fato, as duas pontas do espectro estão firmemente amarradas uma à outra. É a teologia sofisticada que dá ao fundamentalismo o verniz de credibilidade que o distingue da superstição mais grosseira, e é a âncora fundamentalista que impede que a teologia sofisticada se dissolva de vez em mito, estética, etiqueta e vagas boas intenções.

Com isso, claro, as hierarquias se veem obrigadas a andar numa espécie de corda-bamba, que é especialmente instável no caso da Igreja Católica, em sua tentativa de apelar a um rebanho cada vez mais heterogêneo em termos intelectuais, e que tem um nervo bem exposto na relação mantida com o antigo ritual de expulsão de demônios. Como se viu na reação embaraçada ao exorcismo acidental que teria sido realizado pelo papa Francisco.

De cordo com a imprensa internacional, o papa argentino estava abençoando, com imposição das mãos, uma série de cadeirantes na praça de São Pedro. Sem que ele soubesse, um desses fiéis tinha sido levado até lá por um padre que acreditava que o homem estava possuído. Diz a Associated Press: "Francisco pôs as mãos na cabeça do homem e recitou uma prece. O homem ofegou profundamente uma meia dúzia de vezes, tremeu e então relaxou na cadeira de rodas". Um canal de TV ligado à conferência episcopal italiana disse que, "sem dúvida", Sua Santidade tinha realizado um exorcismo.

A linha oficial do Vaticano, no fim, foi a de afirmar que o papa havia apenas "rezado por um doente sofredor", mas não consta que o padre-exorcista Gabriele Amorth, que disse que a ação de Francisco tinha constituído um "verdadeiro exorcismo", tenha sido repreendido.

Um observador cínico poderia, talvez, argumentar que as versões contraditórias foram produzidas para atender às necessidade de públicos diversos, com a nota impessoal do Vaticano dirigida aos católicos sofisticados e a fala apaixonada de Amorth, à turma do fogo e ranger de dentes.

O Vaticano produziu, sob o reinado de João Paulo II, uma nova versão de seu guia de exorcismos em 1999, substituindo o texto anterior do século XVII e, em algo que foi notícia na época, reafirmando a existência do diabo como entidade pessoal e sobrenatural.

Ainda na década de 70, o papa Paulo VI já havia advertido contra a conversão do demônio em mito ou metáfora: "Quem se recusa a reconhecer sua existência (...) ou o explica como uma pseudo-realidade, uma personificação imaginária ou conceitual (...) se afasta da integridade do ensinamento bíblico e eclesiástico".

A despeito da sanção papal, a maioria dos bispos nos Estados Unidos considerava, na virada do século, o exorcismo "um embaraço, um atavismo medieval", de acordo com um sociólogo ouvido pelo NY Times.

Um dos pontos importantes do guia sobre exorcismos é a necessidade de se garantir que o possesso não seja vítima de uma doença orgânica, ou da própria imaginação.

Como explico em detalhe no meu Livro dos Milagres, não parece haver nenhum caso claro registrado, em toda a história, em que ambas as possibilidades tenham sido realmente excluídas. De fato, diversos avanços da psiquiatria, como o diagnóstico da Síndrome de Tourette, têm deixado o espaço para o demônio cada vez mais estreito.

Comentários

  1. Demônio das lacunas.

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Olha, resumindo, a situação das religiões bíblicas, de uma forma ou de outra, fica cada vez mais insustentável. Eu faço a minha parte, aproveitando esse momento de crise, quando a mente das pessoas está mais propícia a descrer, para ajudar a desmentir a bíblia; ou pelo menos provar que não é perfeita. Destruir a falsa ideia de perfeição desse livro é, na verdade, o passo mais importante em direção à morte total dessa cultura universal que atende pelo nome de Deus; assim como aconteceu com Zeus e Thor por exemplo. Acho que a essa altura do campeonato será muito mais difícil, mas creio não ser impossível. Temos que trabalhar mais nas mentes das novas gerações, Sermos incansáveis, Persistentes tal quais testemunhas de Jeová. Durará séculos, mas o que restar desse deus estará bastante arranhado.

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  3. Eu queria ter escrito este texto, Carlos, queria muito.:-) A ideia da relação entre as pontas desse degrade da fé e das posições da religião já havia me ocorrido, mas gostei demais da ideia exposta do suporte que cada ponta, cada trecho do espectro, dá a outra.

    Realmente o que impede o fundamentalismo de ser comparado a superstição pura e simples (inclusive por pessoas esclarecidas e não religiosas) é a aparente complexidade da teologia elaborada.

    E o que torna a teologia elaborada mais que um frágil estertor argumentativo, é a existência de fundamentalistas e pessoas dispostas seriamente a morrer por sua fé.

    Excelente texto, como de costume.

    Um abraço.

    Homero

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