Batman vs. Superman: Em busca de uma nova Era de Prata

Assisti a Batman versus Superman. É um filme razoável: em termos da caracterização do Superman, gostei mais até deste segundo episódio do que de O Homem de Aço: este Kal-El funciona muito melhor, em termos de fidelidade ao conceito fundamental do personagem, do que a arma de destruição em massa que vimos no filme anterior.

A melhor interpretação do filme é a da Gal Gadot: as cenas da Mulher Maravilha são praticamente as únicas em que aquele senso de ridículo instintivo que começa a incomodar no fundo da cabeça quando se vê um adulto fantasiado de super-herói desaparece.

Alguns críticos elogiaram a atuação de Laurence Fishburne como Perry White, mas não entendi o porquê: todas as cenas na redação de O Planeta Diário são decalques óbvios das vistas em Superman e em Superman II, lá se vão mais de 30 anos (incluindo a presença de uma atarantada "Jenny"), mas aquelas cenas tinham sido desenhadas como alívio cômico, enquanto que Fishburne (e Henry Cavill, como Clark Kent), provavelmente seguindo ordens do diretor Jack Zack Snyder, as interpretam como se fossem parte de uma tragédia shakespeareana.

O principal defeito, em termos de plot, é que o filme todo depende de duas "trapaças" de Lex Luthor que o Batman e o Superman "de verdade" deveriam ter visto chegando a quilômetros de distância -- em vez de caírem nelas como patinhos.

Mas esse é o principal defeito em termos de plot. Há um defeito maior, que talvez só seja perceptível para gente como eu, que já tem idade para ser da mesma geração do Batman de Ben Affleck (que, neste filme, era criança em 1981). Que, enfim, viveu a Era de Prata do quadrinhos de super-heróis.

A história das HQs de heróis costuma ser periodizada em Era de Ouro (da publicação da primeira história do Superman, em 1938, até meados dos anos 50), quando o principal público-alvo era infantil; depois, Era de Prata, que arredondando datas iria de 1960 (na verdade, um pouco antes) a 1980 (na verdade, um pouco depois); e em seguida outras eras, Bronze, Contemporânea, etc.

A Era de Prata marca, entre outras coisas, o momento em que as editoras de super-heróis começam a buscar não apenas o público infantil, mas também a cultivar os jovens e os adultos que tinham se acostumado com esse tipo de leitura na infância e mantinham uma ligação afetiva com os personagens. 

A Marvel costuma receber a maior parte do crédito por esse desenvolvimento específico, mas a DC não demorou em seguir a deixa. 

Uma seleção de aventuras do Superman dos anos 70 poderia incluir histórias com temas como racismo (ele seria capaz de amar uma Lois Lane negra?), doença (na primeira aventura contra o vilão Terra-Man, o Homem de aço está sofrendo de um misterioso colapso nervoso), fraqueza e mortalidade (o Superman é infectado pelo Vírus X, uma praga degenerativa e incurável de origem kryptoniana) e responsabilidade social (os Guardiães do Universo advertem o Superman para que deixe os humanos cuidarem de seus problemas políticos e sociais por conta própria, evitando o risco de criar uma humanidade dependente e de se tornar uma espécie de superditador). 

Por mais cabeludos que fossem os temas, no entanto, o cenário se mantinha fantasioso (sereias, duendes, alienígenas cômicos viviam dando as caras) e os finais, felizes. Os heróis não mentiam, não roubavam e não matavam. E mesmo que, eventualmente, discordassem entre si, eram unidos por uma sólida amizade e pelo desejo de fazer o bem.

Mas aí vieram os anos 80, como o acirramento da Guerra Fria, a retórica violenta dos anos Reagan, a ressaca da Guerra do Vietnã, o mantra "ganância é bom". E alguns autores começaram a se perguntar: o que aconteceria se esse ethos humanista e otimista da Era de Prata colidisse como a "realidade" da década? Essa foi a questão que produziu obras como o Miracleman e Watchmen de Alan Moore e o Cavaleiro das Trevas de Frank Miller: sucessos de público e crítica que lançaram a era grim-and-gritty -- "sinistra e áspera" -- dos quadrinhos de heróis, e da qual os filmes de Zack Snyder são herdeiros diretos.

O problema, que o pessoal de vendas e marketing que decidiu que o grim-and-gritty era a "onda do futuro" não percebeu, é que essas obras não tinham autonomia, eram comentários: para funcionar elas dependiam, fundamentalmente, da existência de décadas acumuladas de Era de Prata. 

A luta entre Batman e Superman em Cavaleiro das Trevas só teve a força mítica que teve porque o leitor da época sabia que esse dois personagens tinham sido, durante quase 30 anos, os melhores amigos. Heresias só chocam quando há uma ortodoxia a ser chocada.

Ao tentar construir seus filmes com base na heresia -- ao tentar, de fato, transformar a heresia na nova ortodoxia -- Zack Snyder esvazia os mitos com que trabalha. 

Uma coisa é um Superman que tira uma vida depois de décadas jurando que jamais mataria (numa aventura dos anos 70, em que vai parar, sem memória, num campo de batalha da 2ª Guerra Mundial, Clark Kent é tratado como covarde por sua incapacidade psicológica de puxar o gatilho até mesmo contra nazistas -- ele não conseguia matar nazistas!). Outra coisa é um Superman que mata em sua primeira aparição pública. Uma coisa são Batman e Superman lutando entre si depois de terem salvado o mundo, juntos, centenas ou milhares de vezes; outra é irem às vias de fato em seu segundo encontro.

O universo cinematográfico da DC deveria ter construído sua Era de Prata antes de demoli-la. Iconoclastia, afinal, pressupõe ícones. 

Comentários

  1. Particularmente não consegui me relacionar com nenhum dos personagens. Não dá tempo de identificar eles: não reconheci Batman ou Superman; eram apenas dois caras superpoderosos resolvendo situações. Aliás, essa coisa de ter um Batman que não consegue pensar dois movimentos à frente já deu. Só ficam as saudades.

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  2. Mas os filmes de Donner e Burton (mais os desenhos animados) não funcionam como a Era de Prata?

    []s,

    Roberto Takata

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    1. Acho que não: estão muito longe no tempo, não chegaram a estabelecer mitologias próprias e foram ignorados em termos de continuidade. É como se esses fossem outros heróis.

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    2. Mas mm nos quadrinhos na DC não é dada a respeitar continuidades. (Embora o Retorno de Superman seja relativamente recente e respeite a continuidade.)

      (Talvez o Batman de Nolan seja até um representante melhor do Batman da Era de Prata, já que, ao contrário do Batman de Burton, não matava.)

      Além disso, não parece longe no tempo - mm os filmes que, de tempos em tempos, são reprisados. As animações são muito mais recentes.

      []s,

      Roberto Takata

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    3. A DC não é muito chegada a respeitar continuidade cronológica, é verdade, mas perceba que ela busca manter continuidade de tom: todas as vezes em que o Superman n*recomeçou do zero*, ele recomeçou como uma figura solar, colorida, uma promessa de otimismo e de esperança. O reboot mais recente, do Grant Morrison para os Novos 52, foi talvez o mais radical nisso. A questão, para mim, é o novo universo cinemtaográfico da DC não se preocupou em fazer isso: jogou os heróis na decadência sem antes ter-lhes dado um apogeu. Claro, é bem possível que os executivos e a equipe criativa tenham imaginado que o "apogeu" desses heróis já foi mostrado tantas vezes antes (em quadrinhos, versões cinematográficas anteriores, etc.) que seria desnecessário estabelecê-lo mais uma vez. Mas isso me parece um erro: minha impressão é de que, assim como nas HQs, a cada "reboot", o arco completo precisa ser traçado de novo: porque "esse" Superman do Cavill não é o mesmo personagem do Christopher Reeve: ele partiu de um Krypton diferente para uma Terra diferente.

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  3. Zack, não Jack. :-)

    Quanto ao que o Snyder vem fazendo no universo DC (e antes, em 300 e Watchmen), algo me incomoda e eu não sabia muito bem o que era até ler esse artigo da Salon:

    http://www.salon.com/2016/03/18/ayn_rands_warped_superheroes_of_course_zack_snyders_vision_of_greatness_owes_everything_to_the_fountainhead/

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