Pedro e o lobo transgênico
A mitologia negativa criada em torno dos alimentos geneticamente modificados -- os transgênicos -- não parece dar sinais de arrefecer. Em vez disso, como costuma acontecer com teorias da conspiração e outros fenômenos do folclore contemporâneo, desloca-se, adapta-se: ao mesmo tempo que algumas pessoas ainda se preocupam com a presença de material geneticamente modificado na ração de seus gatinhos, outras já transferem os temores para os pesticidas associados a certas variedades de transgênicos.
Esse deslocamento talvez signifique que fatos e evidências científicas acabam tendo alguma penetração na consciência coletiva, ainda que de modo lento e enviesado. Há dois anos, por exemplo, foi publicado no Journal of Animal Science um trabalho que comparou os registros sobre saúde do gado e dos frangos, antes e depois da introdução dos transgênicos na ração animal nos Estados Unidos, e não encontrou nenhuma diferença relevante.
Ao longo das duas décadas analisadas na pesquisa, a parcela da ração composta por transgênicos consumida pelo gado e pelas aves de corte americanos passou de 0% para mais de 90%, com bilhões de animais alimentados a cada ano.
De acordo com o estudo, todos os indicadores de saúde dos animais melhoraram ao longo do período. A melhoria não pode ser atribuída aos transgênicos – houve avanços em várias tecnologias relacionadas à saúde animal – mas o fato de nenhum novo problema ter surgido é significativo: é improvável, para dizer o mínimo, que pecuaristas e criadores de frango deixassem de notar súbitas epidemias de câncer ou de aberrações genéticas que, inevitavelmente, viriam a afetar a reputação do produto e a reduzir a lucratividade de seus empreendimentos.
Em tempos mais recentes, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos emitiram um relatório conjunto sobre os impactos econômico,ambiental e sanitário das lavouras geneticamente modificadas.
Na parte sobre saúde humana, o trabalho reconhece que, a despeito das dificuldades intrínsecas de se determinar a segurança de qualquer alimento-- "seja geneticamente modificado ou não" -- no que diz respeito ao potencial alergênico, "os dados epidemiológicos disponíveis não mostram nenhuma doença ou condição crônica nas populações que tenha correlação com o consumo de alimentos geneticamente modificados".
Prossegue o relatório: "O comitê não encontrou evidências persuasivas de efeitos à saúde adversos que possam ser atribuídos diretamente ao consumo de alimentos geneticamente modificados". Mais adiante, o texto diz que"existem algumas evidências" de que transgênicos resistentes a insetos são benéficos para a saúde pública, ao reduzir o consumo de pesticidas.
Esse deslocamento talvez signifique que fatos e evidências científicas acabam tendo alguma penetração na consciência coletiva, ainda que de modo lento e enviesado. Há dois anos, por exemplo, foi publicado no Journal of Animal Science um trabalho que comparou os registros sobre saúde do gado e dos frangos, antes e depois da introdução dos transgênicos na ração animal nos Estados Unidos, e não encontrou nenhuma diferença relevante.
Ao longo das duas décadas analisadas na pesquisa, a parcela da ração composta por transgênicos consumida pelo gado e pelas aves de corte americanos passou de 0% para mais de 90%, com bilhões de animais alimentados a cada ano.
De acordo com o estudo, todos os indicadores de saúde dos animais melhoraram ao longo do período. A melhoria não pode ser atribuída aos transgênicos – houve avanços em várias tecnologias relacionadas à saúde animal – mas o fato de nenhum novo problema ter surgido é significativo: é improvável, para dizer o mínimo, que pecuaristas e criadores de frango deixassem de notar súbitas epidemias de câncer ou de aberrações genéticas que, inevitavelmente, viriam a afetar a reputação do produto e a reduzir a lucratividade de seus empreendimentos.
Em tempos mais recentes, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos emitiram um relatório conjunto sobre os impactos econômico,ambiental e sanitário das lavouras geneticamente modificadas.
Na parte sobre saúde humana, o trabalho reconhece que, a despeito das dificuldades intrínsecas de se determinar a segurança de qualquer alimento-- "seja geneticamente modificado ou não" -- no que diz respeito ao potencial alergênico, "os dados epidemiológicos disponíveis não mostram nenhuma doença ou condição crônica nas populações que tenha correlação com o consumo de alimentos geneticamente modificados".
Prossegue o relatório: "O comitê não encontrou evidências persuasivas de efeitos à saúde adversos que possam ser atribuídos diretamente ao consumo de alimentos geneticamente modificados". Mais adiante, o texto diz que"existem algumas evidências" de que transgênicos resistentes a insetos são benéficos para a saúde pública, ao reduzir o consumo de pesticidas.
Mas e o glifosato?
Já que a tentativa de convencer a população em geral de que os transgênicos fazem mal à saúde não obteve sustentação científica e, talvez em parte graças a isso, não colou -- virando uma espécie de crença específica integrada à identidade de certos nichos sociais, mais ou menos como a virgindade de Maria está integrada à identidade católica -- os mercadores do medo (uma espécie de contrapartida, à esquerda, dos "mercadores da morte" da indústria tabagista e armamentista) resolveram se agarrar a produtos colaterais ou paralelos. Aí entrou o glifosato, principal ingrediente do herbicida RoundUp, usado em conjunto com as variedades transgênicas RoundUp Ready da Monsanto.
Parece complicado, mas não é: a Monsanto produz o herbicida RoundUp, um veneno que mata plantas, vendido como remédio para pragas que atingem certas lavouras. Mas como o RoundUp é um veneno que ataca vegetais, e as lavouras são vegetais, elas também podem acabar sucumbindo a ele, o que seria um efeito indesejado. Para aumentar o potencial de vendas do herbicida, a empresa criou uma linha de transgênicos chamada RoundUp Ready (em português, "preparado para o RoundUp") que é imune ao herbicida.
Agora, você pode ter todo tipo de objeção moral, econômica, religiosa ou metafísica à ideia de uma megacorporação multinacional manipular a natureza para poder vender mais veneno, mas o fato é que nenhum agricultor está sendo obrigado pela Gestapo a usar esses produtos, e não há nenhuma prova de que os vegetais RoundUp Ready sejam prejudiciais à saúde humana.
Mas, e o tal herbicida? Se ele é tão venenoso assim, ao ponto de ser preciso usar plantas transgênicas para suportá-lo, o que ele não estará fazendo com a saúde humana? O primeiro ponto a se levar em consideração aí é que o glifosato é um herbicida: um veneno de plantas. Seres humanos são animais. Não há, a priori, nenhuma razão para imaginar que algo criado para fazer mal para plantas vá fazer mal para pessoas, ou vice-versa.
Mas não vamos nos fiar no a priori: o que a ciência diz? Os principais estudos citados por quem deseja assustar as pessoas com a menção da palavra "glifosato" foram assinados ou pelo francês Gilles-Eric Séralini, ligando o herbicida e o milho RoundUp Ready à ocorrência de câncer em ratos, ou pela americana Stephanie Seneff, ligando o glifosato a praticamente tudo, ao bloquear funções importantes de certas enzimas humanas, e também ao autismo.
Então, de baixo para cima: a relação que Seneff (às vezes citada apenas como "pesquisadora do MIT") tenta fazer entre glifosato e autismo já virou uma espécie de piada nos círculos de divulgação científica da internet. Ela simplesmente pegou os gráficos de diagnósticos de autismo e de uso de glifosato e viu que ambos subiam ao longo do tempo, para daí concluir que glifosato "causa" autismo. Como já bem notou um crítico, muitas outras coisas também crescem ao longo do tempo junto com os diagnósticos de autismo, incluindo o consumo de produtos orgânicos. Será que eles causam o distúrbio?
Fonte: http://scienceblogs.com/insolence/files/2014/12/19bm94ui3v59fpng.png |
Já o trabalho de Seneff ligando o herbicida a tudo tem uma cara mais científica (até foi publicado como paper) mas, nas palavras do químico Derek Lowe -- que mantém um excelente blog dentro do site da revista Science Translational Medicine -- é "um monte de merda". Lowe explica que o artigo se limita a tecer cenários especulativos e ignora todos os resultados concretos de testes realizados com glifosato e enzimas. "Depois dessa, vou ignorar tudo o que Seneff produzir sobre esse assunto", escreve ele, em outra postagem.
Quanto ao trabalho de Séralini que supostamente demonstra que o milho transgênico da Monsanto e o herbicida causam diversos tipos de dano à saúde em ratos, incluindo câncer: este estudo foi publicado originalmente em 2012, e recebeu tantas críticas da comunidade científica que acabou retratado -- o periódico que o havia trazido a público concluiu que o trabalho não tinha qualidade suficiente para fazer parte da literatura científica.
Entre outras barbeiragens, Séralini usou um tipo de rato de laboratório já predisposto a desenvolver câncer em seus testes, e lançou mão de técnicas estatísticas questionáveis. O artigo foi republicado algum tempo depois, num veículo menos exigente, mas continua a não ser levado a sério.
No ano passado, a Agência Internacional de Pesquisado Câncer (IARC), vinculada à ONU, decidiu incluir o glifosato em sua lista 2A, de "prováveis agentes carcinogênicos". Essa decisão foi atacada de vários lados, entre outros motivos, porque cita o artigo de Séralini como se fosse uma fonte confiável. Mais recentemente, outros dois órgãos da ONU -- a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Organização de Alimento e Agricultura (FAO) -- concluíram que é improvável que o glifosato faça mal à saúde humana.
De qualquer modo, esse tipo de contradição é exatamente o que os teóricos da conspiração adoram. Talvez a OMS e a FAO tenham entrado num esquema da Monsanto, enquanto a IARC se manteve incorruptível? Não. Este artigo da revista Wired explica bem o que está acontecendo: "A IARC estuda se um produto químico pode causar câncer em qualquer situação possível, realista ou não, enquanto que o relatório conjunto [da OMS e FAO] investiga se o glifosato pode causar câncer em condições da vida real, por exemplo, se você comer toda manhã sucrilhos feitos de milho tratado com glifosato".
A distinção é entre "perigo" e "risco": roubando uma metáfora de Derek Lowe, tubarões são perigosos, mas nas condições de vida da população humana em geral -- sobre terra firme -- oferecem risco zero (a menos que você seja um personagem de Sharknado, claro). A lista da IARC avalia a evidência de que algum agente ou produto oferece perigo de causar câncer. Ela não leva em conta as condições em que esse perigo teórico se transforma num risco real.
É por isso que a lista 1 da IARC -- agentes comprovadamente carcinogênicos -- inclui coisas tão díspares quanto fumaça de tabaco, plutônio, carnes processadas (como bacon e mortadela), luz do sol e a bactéria que causa úlcera estomacal.
A questão do nível de exposição necessário para transformar o perigo em risco varia enormemente de um produto para o outro. Como explica este outro artigo da Wired, fumar aumenta o risco de câncer de pulmão em 2.500%. Já comer duas fatias de bacon por dia aumenta o risco de câncer colorretal em 18%. E o glifosato nem está na lista 1, onde a evidência de perigo é clara e estabelecida: está na 2A, um nível abaixo. Já a fumaça de motores a diesel está na lista 1 da IARC.
Existem diversos contaminantes ambientais e produtos que têm, ou já tiveram, uso disseminado e que, além de serem perigosos, trazem riscos reais em condições normais. O chumbo misturado ao combustível de veículos é um. O CO2, embora não traga risco direto para a saúde humana, tornou-se um contaminante perigoso para o meio ambiente. E há o tabaco, ainda amplamente usado.
O alarmismo em torno de coisas como transgênicos acaba dando a muita gente pretexto para ser blasé em relação a riscos reais, como o cigarro, e reduz o nível de aceitação e de credibilidade de alertas importantes em parte da população que se acredita bem informada: a sucessão de alarmes falsos torna as pessoas insensíveis à presença dos verdadeiros lobos no rebanho.
Carlos,
ResponderExcluirTem muito material interessante sobre GMOs aqui nesta página mantida pelo Nassim Nicholas Taleb:
http://www.fooledbyrandomness.com/PrecautionaryPrinciple.html
Achei que seu post não endereça algumas das questões que ele e seus colaboradores colocam.
Abraços,
Adolfo
Oi, Adolfo, obrigado pelo link! Realmente não tratei da discussão do Princípio da Precaução na postagem por não considerá-lo relevante -- mas seu comentário talvez me leve a elaborar uma postagem específica a respeito. Resumidamente, Taleb em momento algum demonstra que o uso da tecnologia transgênica gera riscos maiores (os tais "riscos de ruína") a que os já presentes em outros processos de seleção artificial, como hibridização ou mutação estimulada por radiação. Ele usa um monte de advérbios -- os transgênicos são "categoricamente" ou "qualitativamente" distintos -- mas não justifica isso em momento algum. O argumento todo parece depender de uma visão essencialista da biologia que vai contra o próprio entendimento contemporâneo da evolução e da biologia molecular. Não faz sentido, por exemplo, dizer que a introdução de um gene numa espécie onde ele não se manifestava é mais grave do que introduzir uma espécie num ambiente em que ela não existia. De fato, há várias razões biológicas e ecológicas para considerar o primeiro risco ordens de magnitude menor. No fim, o argumento dele ou se aplica à agricultura como um todo, ou não se aplica a agricultura nenhuma. Também noto que existem várias objeções já bem articuladas às ideias dele nesse campo. Um dos meus contrapontos favoritos é este: http://theness.com/neurologicablog/index.php/nassim-taleb-the-precautionary-principle-and-gmos/ Abs!
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