Drosófila astrológica: a utilidade das pseudociências
Como parte da pesquisa para escrever meu Livro da Astrologia, fiz uma assinatura (anual, £16) da revista Correlation, publicada pela Associação Astrológica da Grã-Bretanha e definida pelos editores como "um periódico de pesquisa". A Correlation é publicada há três décadas, e seus arquivos estão disponíveis, online, para os assinantes. A revista tem todas as marcas distintivas de um journal: capa sóbria e levemente desinteressante, artigos precedidos por abstracts, cheios de gráficos e equações, uma preocupação quase obsessiva com valores-p que chegam abaixo de 0,05 (se você já está acostumado com essa conversa de valor-p, pode pular o parágrafo entre parênteses, abaixo).
(O valor-p representa a probabilidade de se obter dados idênticos ou ainda mais extremos que os gerados pelo experimento, pressupondo-se que o trabalho foi bem conduzido e que a hipótese testada é falsa. Por conta disso, um valor-p baixo muitas vezes é interpretado como sinal de que seria razoável supor que a hipótese testada é verdadeira. Por razões históricas, a marca de 0,05 é considerada o limiar da "significância" -- um sinal de que o resultado merece atenção da comunidade científica.)
Tem gente por aí que parece não entender por que me dedico tanto a pesquisar coisas em que não acredito. Fora meu interesse quase patológico em formas e estruturas de raciocínio em geral -- mesmo, ou principalmente, as que dão em becos sem saída -- parte da explicação está no que podemos aprender sobre o que é, ou deveria ser, a prática legítima da ciência quando mergulhamos nos meandros das pseudociências.
O psicólogo holandês Eric-Jan Wagenmakers certa vez se referiu ao estudo da paranormalidade como a "drosófila das práticas questionáveis de pesquisa". "Se uma metodologia de pesquisa particular (...) mostra, consistentemente, a existência do paranormal, isso significa que essa mesma metodologia não pode ser usada com segurança em outros campos", escreveu ele no artigo "A Skeptical Eye on Psi".
A leitura de Correlation mostra exemplos sortidos de como a astrologia também se presta muito bem a esse "efeito drosófila". Um caso especialmente didático publicado na edição mais recente, de dezembro de 2015, é o artigo "A study of minor and major aspects in theologians’ charts". Seu autor se vale de uma lista de datas de nascimento de mais de 6 mil teólogos finlandeses para tentar extrair aspectos do planeta Júpiter que sejam significativos para essa carreira, ou para a vocação religiosa mais genérica. Um "aspecto" é um ângulo dotado de significado especial (normalmente, 60º, 90º e seus múltiplos) entre dois planetas, tal como lançados numa carta astrológica.
O trabalho levou em conta data, mas não horário de nascimento, porque esse dado não estava disponível, e os mapas astrais foram elaborados usando um horário estimado de meio-dia. O artigo afirma que "os aspectos sob consideração encontram-se em efeito por vários dias, portanto nenhuma imprecisão grave será causada". Mil grupos de controle foram gerados por um processo de rotação aleatória das datas de nascimento obtidas, misturando-se dias, meses e anos.
O artigo começou testando uma lista de 11 aspectos, e depois foi ampliando a busca. Constatou-se um excesso significativo (valor-p variando de 0,04 a 0,003, dependendo do número de aspectos incluídos na varredura) de aspectos de Júpiter na relação de teólogos em comparação com os grupos de controle. E então? Milhares de teólogos! Mil grupos de controle! Valor-p na escala dos milésimos! Vamos todos nos curvar diante do fato inquestionável de que Júpiter influencia a vocação religiosa?
Na-na-ni-na. Quando diz que "os aspectos sob consideração encontram-se em efeito por vários dias", o artigo entrega uma de suas fraquezas fatais (outra é usar a mesma base de dados para testar várias hipóteses consecutivamente, o que vai aumentando, de modo progressivo, a chance de efeitos espúrios aparecerem por mero acaso -- quem procura com afinco, afinal, sempre acha. Até mesmo o que não está lá).
Não sei qual a taxa de natalidade da Finlândia, mas é de se supor que, nessa janela de "vários dias", tenham nascido algumas centenas, talvez milhares, de crianças que não cresceram para se tornar teólogos, ministros religiosos ou mesmo leigos devotos. O verdadeiro teste da hipótese "aspectos de Júpiter predispõem as pessoas a serem religiosas" não é ver qual a proporção de pessoas, numa amostra de religiosos, que tem esses aspectos, e sim ver, numa amostra de pessoas com esses aspectos, qual a proporção que se torna religiosa. A amostra de religiosos pode permitir formular a hipótese, mas não confirmá-la.
Aí entra o "efeito drosófila" de que fala Wagenmakers: a confusão entre estudos exploratórios (que permitem identificar possíveis padrões na natureza) e confirmatórios (que buscam checar se esses padrões são reais) não é exclusiva das artes esotéricas e das pseudociências. Pode-se argumentar que defeitos assim são especialmente prevalentes nessas áreas, mas volta e meia aparecem em trabalhos publicados sob a chancela do mainstream científico. O hábito de identificá-los in vitro, nos meios de cultura alternativos, pode servir como vacina para as eventuais aparições in vivo.
Nem uma correçãozinho Bonferroni aplicaram?
ResponderExcluir[]s,
Roberto Taata
Nenhuma é mencionada, então suponho que não... Basicamente, ordenharam a base sem dó nem piedade.
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