Congelado para o futuro: round 2016
"Criônica" é o nome dado à tecnologia/crença/negócio de congelar corpos humanos inteiros, ou pelo menos o cérebro, com vistas à ressuscitação futura. Como dispositivo de enredo em obras de ficção, o tema já foi usado em praticamente todo tipo de história, mas também há empresas que oferecem serviços criônicos atuando no mundo real (dado o estado atual da tecnologia e as regras de proteção ao consumidor, elas não podem prometer ressuscitação, assim, com todas as letras, mas apenas vender o "serviço de custódia" do cadáver congelado). Já tratei desse assunto em outras oportunidades, mas dois artigos publicados no fim da semana passada me convenceram a voltar a ele.
O primeiro é do site The Engineer, sobre o caso de uma menina britânica de 14 anos que ganhou, na Justiça, o direito de ser congelada após a morte. De acordo com a notícia (que, por algum motivo, escapou aos ávidos caçadores de sensacionalismo da mídia nacional), "o veredicto veio pouco antes de ela morrer de câncer". O custo do "tratamento" em si, para além do translado do corpo para os Estados Unidos (onde fica a firma criônica) é estimado em 37 mil libras, o que, no momento em que digito esta postagem, equivale a algo como R$ 155 mil.
O site ouviu especialistas sobre o assunto. As críticas à criônica são antigas e conhecidas: com o congelamento, formam-se cristais de gelo no interior das células -- esses cristais são cortantes e pontiagudos. Além disso, a água se expande quando congelada, o que também não deve ser um processo agradável quando você é uma membrana celular tentando segurar o citoplasma lá dentro (ou tentando não ser esmagada pelo gelo que se forma lá fora).
É verdade que existem anticongelantes que evitam a formação de cristais, fazendo o gelo assumir uma conformação amorfa, como a do vidro, e não o aspecto de facas e agulhas. Também é verdade que esperma e embriões são congelados e reutilizados rotineiramente. Mas as fontes ouvidas por The Engineer ajudam a pôr esses casos em perspectiva: "A criopreservação ainda não foi aplicada com sucesso a estruturas grandes como o rim humano para transplante", disse Barry Fuller, professor de cirurgia e medicina de baixa temperatura do University College London.
O processo não é bom para salvar um rim. O que dizer do corpo inteiro? Ou do órgão mais complexo que existe, o cérebro humano? Esse é o ponto do segundo artigo a que me referi no início, publicado pela revista New Humanist. De autoria do neurocientista Clive Coen, do King's College de Londres, a peça trata, especificamente, das perspectivas da criônica para o cérebro humano. "Spoiler": não são nada boas.
Coen explica que o congelamento de um cérebro, de modo a preservar sua integridade funcional, é uma corrida contra o tempo: primeiro, o anticongelante que deve evitar os danos causados pelos cristais de gelo tem de se infiltrar pelos bilhões de neurônios ao mesmo tempo em que o frio extremo se espalha. Segundo, o frio e o anticongelante têm de fazer seu trabalho antes que a falta de oxigênio, trazida pela morte, cause danos graves a regiões fundamentais do órgão, como as responsáveis pela memória (quem gostaria de acordar amnésico em 2216?).
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1688QqnX8CVVYtWEYwK7GM1R8NkyLJorPUipmR-_UzZO68IvBu4z4gsaGx-9FIOoosASuFlmL7Vxi3q0tbIJPvzeSzdmQcpz7niC8eNXnAkd5-_CwYzRBrAWjMDMoADhbMy97HklMJp_A/s1600/powers.jpg)
Outras dificuldades aparecem no impacto do congelamento sobre os neurotransmissores. Coen diz que os proponentes da criônica gostam de citar estudos sobre a preservação quase perfeita de cérebros de animais usando certos conservantes, mas lembra que esses conversantes são tóxicos.
No fim, a solução para os problemas trazidos pela criônica acabam sendo jogados no colo de alguma "tecnologia futura" -- nanotecnologia, por exemplo, para consertar neurônios quebrados ou repor neurotransmissores. Mas se é para esperar alguma mágica tecnológica do futuro, por que não contar com a ressurreição de nossas consciências por aliens capazes de extrair a informação estocada por emaranhamento quântico no interior de buracos negros? (Bom, isso talvez demore um pouco mais, é verdade).
Coen aponta ainda outro problema: se você espera não ser um pária ao acordar no futuro, será preciso que seus parentes e amigos se congelem, também: "Não é um esquema de pirâmide, é mais um esquema de iceberg", escreve.
Comentários
Postar um comentário