Manipulação textual e espinhal: quiropraxia na Folha





Em 1º de maio, The New York Times publicou um artigo de opinião -- basicamente, uma postagem de blog -- assinada por um médico, Aaron E. Carroll, formulando a ideia de que alguns estudos recentes parecem sugerir que a chamada terapia de manipulação espinhal, oferecida em práticas como quiropraxia e osteopatia, tem algum efeito benéfico para dor lombar. Eis então que, em 2 de maio, a página "Equilíbrio" da Folha de S. Paulo publica uma versão do artigo de Carroll que não só omite o fato de que o autor é médico, não jornalista, como também maquia o texto para fazê-lo parecer uma reportagem, e não uma opinião.

A versão nacional ainda faz o favor de incluir uma referência à inclusão de terapias ditas alternativas, entre elas a quiropraxia, no SUS. Abaixo, o leitor incrédulo pode cotejar os parágrafos iniciais do original americano com os da tradução oferecida ao indefeso assinante da FSP, onde a mudança de tom (de "é o que eu acho" para "eis os fatos") fica bem clara:



Imagino que fechar uma página em branco sobre saúde e bem-estar às pressas num plantão de feriado (ou, pior, se a equipe responsável estiver de folga, às pressas e antes do feriado) é jogo duro. Também sei que os padrões críticos e éticos do chamado "jornalismo de bem-estar" nunca foram muito altos -- basta ver as barbaridades que saem nas revistas de dieta e estética -- mas esse tipo de alquimia entre opinião e informação me parece insalubre, mesmo diante dos critérios de qualidade especialmente frouxos da área. 

Note-se, ainda, um problema crucial na tradução: low back pain, ou "dor lombar" (na parte de baixo das costas) é vertido como simplesmente "dor nas costas", em geral. Ou seja, além de maquiar o gênero jornalístico, o texto publicado na FSP exagera enormemente a alegação apresentada.

É possível argumentar, porém, que o texto do Dr. Carroll é, em si, bem informativo: afinal, ele cita estudos publicados, como esta revisão de testes de terapia de manipulação espinhal, do prestigiado periódico JAMA, que apontam algum benefício da terapia de manipulação espinhal para dor lombar. O problema é que a interpretação correta desses estudos é uma questão em disputa na comunidade científica. Editorial na mesma edição do JAMA, por exemplo, diz:


Traduzindo: "A ausência de de testes cegos em muitos dos estudos clínicos pode limitar a validade dos resultados. A maioria dos voluntários para os estudos clínicos provavelmente previa que se beneficiariam da terapia de manipulação espinhal, e geralmente viam o tratamento com bons olhos. Esses pacientes podem ficar desapontados se forem destinados, aleatoriamente, para um grupo de controle, e isso pode afetar a melhora percebida, essencialmente, um efeito nocebo (um nocebo é um efeito negativo criado por expectativas negativas quanto ao tratamento). Se isso for verdade, pouco se sabe sobre os resultados entre pacientes que possam ver a terapia de manipulação espinhal de modo menos favorável". 

Uma visita ao blog do médico e pesquisador Edzard Ernst revela ainda que esta revisão do JAMA é vista de modo muito cauteloso e nuançado por outros especialistas. Ernst chama atenção para dois pontos: um, que a maioria dos estudos sobre manipulação espinhal omite efeitos adversos, logo a afirmação de que esses eventos são raros na literatura científica tem pouco significado; dois, que nenhum dos estudos elencados na revisão controlou o efeito placebo. O pesquisador cita ainda a opinião de Paul Ingraham, do blog PainScience. Escreve Ingraham, sobre o trabalho publicado em JAMA:

"Esta não é uma revisão claramente positiva: ela mostra evidência fraca de uma pequena eficácia, baseada em "heterogeneidade significativa inexplicada" nos resultados. Isto é, os resultados estavam por toda parte (mas sem benefícios impressionantes informados em qualquer um dos estudos) e a mistura não pode ser explicada por nenhum fator óbvio, mensurável. Isto provavelmente quer dizer que há muito ruído nos dados, muitas coisas que são, pelo menos, tão influentes quanto o próprio tratamento. Ou -- sendo otimista -- pode significar que a terapia de manipulação espinhal é 'apenas' ineficaz ou medíocre em média, mas pode ter melhores benefícios numa minoria de casos (que ninguém parece ser capaz de identificar)". O autor conclui que proclamar que a revisão representa um triunfo da quiropraxia é como "fazer uma limonada de limões científicos".

Uma coisa que a Folha e o NY Times têm em comum é que, ao mesmo tempo em que ambos os veículos se preocupam em manter uma cobertura frequente de temas científicos, os dois também sofrem de uma forte tentação para o que eu chamaria de sensacionalismo natureba -- a necessidade de lançar um olhar simpático sobre abordagens alternativas só porque são alternativas, e coisas alternativas são por definição lindas e fofas, danem-se os fatos. 

O Times foi duramente criticado, ano passado, por publicar uma reportagem que manipula números a fim de "demostrar" que lavouras transgênicas são menos eficientes que as tradicionais. A FSP passou o maior carão durante os Jogos Olímpicos ao derramar elogios sobre a técnica de sucção usada por Michael Phelps e, depois, por endossar  teorias conspiratórias malucas sobre o 11/9

No caso da tradução "transgênica" artigo do Dr. Carroll, a vocação comum dos dois diários se encontra, mas os problemas acabam agravados na versão brasileira por conta da conversão de peça de opinião (onde já está claro que a abordagem será subjetiva) em informação (onde se pressupõe o máximo de esforço em prol da objetividade) e pela tradução de low back pain como "dor nas costas". Sabe-se, por exemplo, que a manipulação da coluna cervical é perigosa, podendo causar danos graves às artérias que alimentam o cérebro. O texto original em inglês deixa claro que os possíveis benefícios da técnica se limitam à dor na parte de baixo da coluna. O traduzido omite esse cuidado.

Comentários

  1. Excelente texto. Furou meu blog: eu estava pensando em blogar sobre o assunto quando li a matéria e lembrei imediatamente dos posts do Edzard Ernst.
    Só queria acrescentar que a tradução omite partes do texto original que evocam cautela além (na versão online) dos links para os artigos citados.

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  2. Parabens pelo texto! Fico feliz em ver pessoas esclarecidas como você colocando os pingos nos is! Impressionante como a midia replica groselhas só por terem sido publicadas em grandes veiculos de informação!

    Recomendo ler mais aqui:

    https://sciencebasedmedicine.org/spinal-manipulation-and-the-jama-meta-analysis-an-analysis-of-fuel/

    Parabens novamente!

    Ganhou um fã!

    Abraçø!

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