O apelo à pesquisa irrelevante


A edição mais recente da revista Skeptical Inquirer (nota aos supersticiosos: é sempre melhor dizer "mais recente" que "última") traz um artigo de autoria de Craig Foster e Serena Ortiz -- ambos integrantes da Academia da Força Aérea dos Estados Unidos -- que aponta o florescimento de uma nova tática entre os promotores de pseudociências: a do apelo à pesquisa irrelevante.

Foster e Ortiz apontam que a maioria das análises das técnicas usadas pelos promotores de ideias infundadas que tentam se revestir de autoridade científica chama atenção para dois pontos, a descrição imprecisa de eventos (dizer, por exemplo, "minha tia se curou de câncer depois de visitar a benzedeira!", omitindo o curso de quimioterapia que se desenrolou nos meses anteriores à visita) e a seleção capciosa de observações pouco representativas do todo.

Uma forma clássica de responder a essas manobras é apelar à literatura científica, onde, espera-se, as observações passam por tratamento estatístico adequado e os eventos são relatados de modo completo e objetivo.

Mas, assim como numa corrida armamentista, os promotores de pseudociências desenvolveram suas contra-medidas. Uma delas é a formação de uma espécie de literatura científica paralela. Os autores do artigo na Skeptical Inquirer apontam para o uso do que parece ser uma versão refinada dessa tática pelos chamados antivaxxers, grupos que se opõem à vacinação infantil. Isso de certa forma faz sentido, porque o próprio movimento antivaxxer moderno nasceu de um tropeço da literatura científica, a infame publicação, pela Lancet, do trabalho (hoje em dia, já profundamente desacreditado, desmentido e retratado) do ex-médico britânico Andrew Wakefield sobre a suposta ligação entre uma vacina e autismo.

Foster e Ortiz descrevem como grupos antivaxxers online compartilham entre si listas de artigos que supostamente apoiam sua causa, para serem usados em debates e eventuais confrontos online. "É a abordagem sacoleira da evidência", apontam os autores: usa-se a quantidade, e não a qualidade, do material como apoio.

Os autores notam que trabalhos anteriores já haviam chamado atenção para a pouca disposição dos promotores de pseudociências em "limpar" suas bases de dados, eliminando o material já desacreditado, mas argumentam que a promoção da pesquisa irrelevante vai além: "Trata-se de uma agregação ativa de diversas pesquisas questionáveis ou apenas perifericamente relacionadas, numa tentativa de justificar a ciência subjacente a uma alegação".

O uso de estudos de má qualidade, mal planejados ou de resultado questionável para promover uma alegação não é exatamente novidade, claro. A história da parapsicologia, do espiritualismo e da quiropraxia está repleta de exemplos, assim como a da homeopatia. Em seu livro Homeopathy: The Undiluted Facts, Edzard Ernst chama atenção para o fato de que existem alguns estudos aparentemente bem-conduzidos que apontam a efetividade da homeopatia. Só que a preponderância esmagadora da evidência de boa qualidade aponta na direção oposta. 

Mas Foster e Ortiz argumentam que os antivaxxers vão além, já que rotineiramente citam estudos que nada têm a ver com o debate em torno das vacinas propriamente ditas -- por exemplo, trabalhos sobre a toxicidade do mercúrio que não testaram a molécula específica que às vezes é usada como conservante em vacinas, ou testaram concentrações ordens de magnitude maiores que as encontradas em vacinações. Listas de estudos irrelevantes (por baixa qualidade ou por não tratarem do mérito da questão) disponibilizadas em bases de dados antivacinação podem conter mais de uma centena de papers.

Essa tática funciona em dois níveis, "poluindo" os resultados de buscas online e criando, para o divulgador de ciência, o aparente ônus de explicar, caso a caso, por que os estudos citados são ruins ou não têm nada a ver com o assunto. "Os defensores da ciência podem entrar no debate sabendo ter as cartas vencedoras nas mãos, mas a comunidade antivacinação pode oferecer uma longa lista de contra-argumentos fracos, sob a forma de pesquisa fraudulenta, pesquisa ruim, pesquisa apenas tangencialmente relacionada e supostas conspirações", escrevem os autores. Quando todos os argumentos finalmente tiverem sido apresentados e discutidos, apontam eles, "recém-chegados ao debate compreensivelmente poderão estar exaustos e inseguros".

O artigo na Inquirer fecha numa nota mais ou menos otimista, argumentando que o apelo à pesquisa irrelevante mostra um reconhecimento tácito, por parte do "outro lado", de que a pesquisa importa. A partir daí, deve ser possível definir os termos do que representa uma pesquisa de qualidade e relevante, e chamar atenção para a questão do valor do consenso científico.

Comentários

  1. Eu já me deparei com pesquisas deste tipo, os espiritualistas e e suas "evidencias cientificas" por isso nem me surpreende os defensores da fosfoetanolamina usando apelo à pesquisa irrelevante para argumentar a favor.
    Estou ficando calejado, vida que segue.

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