Uma verdade milenar sobre astrologia



Existem algumas verdades milenares que se perdem na poeira do tempo, e precisam ser redescobertas a cada geração. Uma das mais preciosas é a de que astrologia é bobagem. Defensores da prática adoram dizer que têm uma tradição imemorial que só passou a ser atacada por causa do materialismo reducionista do mundo moderno.

Nada mais falso: em todas as eras, diversas das mentes mais argutas se pronunciaram contra o patente absurdo da hipótese astrológica -- de que a posição dos astros na hora do nascimento determina, ou influencia, a personalidade e o destino dos seres humanos. O que o "materialismo reducionista" dos tempos modernos fez foi produzir instrumentos para mensurar o tamanho do absurdo.

Em 50 AEC, mesma época em que os irredutíveis gauleses da aldeia fictícia de Asterix se insurgiam contra os romanos, o orador romano Cícero produziu o discurso Sobre a Adivinhação (De Divinatione), onde argumenta longamente contra a astrologia. Um trecho: "O fato de que homens nascidos no mesmo instante são diversos em caráter, carreira e destino deixa muito claro que a hora de nascimento nada tem a ver com a determinação do rumo da vida".

No século 15, o filósofo renascentista Pico della Mirandola compôs não um, mas 12 volumes de refutações da astrologia, incluindo as considerações de que astrólogos discordam entre si, de que previsões só se cumprem por acaso,e da ausência de base física para os efeitos pretendidos.

Fast-forward para 1948, o psicólogo Bertram Forer demonstra que textos vagos e genéricos, porém lisonjeiros, são lidos como altamente precisos por pessoas que acreditam que esses textos foram compostos especialmente para elas. Os textos usados por Forer, em sua clássica demonstração, haviam sido retirados de manuais astrológicos.

Um pouco mais à frente, em 1971, a revista francesa Ici-Paris ofereceu a seus leitores interpretações personalizadas de seus mapas astrais individuais. Os leitores reagiram fascinados, afirmando que a precisão das leituras era maior do que 90%. No entanto, todos eles haviam recebido exatamente a mesma interpretação -- a da carta astral de um notório serial-killer.

Já neste século, uma análise estatística das datas de nascimento de milhões de casais do Reino Unido, coligidas no censo britânico, falhou em encontrar qualquer tipo de relação de "compatibilidade" (ou incompatibilidade) entre signos astrológicos.

Enfim, astrologia é bobagem. Fato dado ao conhecimento público, pelo menos, desde 50 AEC, e confirmado e refinado diversas vezes desde então.

Mas esse conhecimento milenar se perde facilmente, até mesmo quando, como no caso do estudo britânico, é do presente milênio. Como assinante que vive no interior paulista, tenho o inenarrável privilégio de ser poupado de receber a Revista da Folha aos domingos, o que me trouxe o alento de não ler a propaganda gratuita -- desculpe, "matéria de comportamento" -- da astrologia publicada ali, pelo menos até o momento em que alguns amigos houveram por bem compartilhar o link pelo WhatsApp.

A pauta, uma reciclagem de assunto tratado tempos atrás pela mídia internacional, explora o sucesso renovado da arte astrológica entre os ditos millennials, a garotada descolada que acha que ser rebelde e salvar o mundo significa passar creme fixador na barba, vestir camisa xadrez e abrir hamburgueria gourmet.

O fenômeno em si tem diversos precedentes históricos, como a onda New Age dos anos 70-90, e a pauta, mesmo se derivativa (algo comum na mídia brasileira: uma boa pista sobre o que estará na capa da Veja da semana que vem, por exemplo, é o que esteve na capa da Time da semana retrasada), não é ruim.  A execução, no entanto, é problemática (para dizer o mínimo).

Para quem chegou agora ao blog: sou autor de algo chamado O Livro da Astrologia, um apanhado histórico-científico-psicológico sobre a prática. Já debati o assunto com a presidente da Associação Brasileira de Astrologia, Vera Facciollo, ouvida na propaganda, ops, reportagem da revista.

Também já escrevi um breve comentário sobre astrologia financeira, outro ponto que o texto da RFSP leva mais a sério do que merece. E para não dizer que tenho algo pessoal contra o Grupo Folha, já colaborei com o UOL em um artigo sobre astrologia, onde fiz o que a peça publicitária, desculpe, reportagem, não fez: ouvi um psicólogo especializado em vieses cognitivos e pseudociências.

A astrologia é um fenômeno social e psicológico complexo, mas isso não é exatamente desculpa para que pessoas que têm o dever profissional de informar o público finjam que existe alguma verdade por trás da prática, ou de seus princípios. Sacrifícios humanos para propiciar os deuses também eram fenômenos sociais e psicológicos complexos, mas acho que ninguém lamenta o fato de terem sido abandonados.

E como sabemos que não existe verdade nenhuma por trás da prática ou de seus princípios? A resposta é longa (escrevi um livro inteiro sobre o assunto, lembre-se), mas tenho um artigo a respeito aqui, para quem estiver curioso.

Falando em artigos, há mais de 30 anos o pesquisador australiano Geoffrey Dean publicou o monumental Does Astrology Need to Be True?, em que analisa um dado crucial -- a astrologia precisa ser verdade para funcionar?

Ser verdade é, ora bolas, ser verdade: a posição dos astros no céu na hora do nascimento determina (ou, vá lá, sinaliza) a personalidade e o destino de uma pessoa? Funcionar é parecer dar aos aderentes da prática os benefícios que dizem extrair dela, como insights sobre a própria personalidade, dicas de comportamento, conforto psicológico.

A resposta é, fundamentalmente, não. Uma pessoa pode se sentir beneficiada pela leitura de um mapa astral mesmo se o mapa astral for (como é) um amontoado de bobagens, ou destinado a outra pessoa totalmente diferente, como no caso do experimento da Ici-Paris.

A ilusão pessoal de validade da astrologia é explicada pelo Efeito Forer, que descrevi rapidamente lá no começo, e por outros mecanismos semelhantes. Explicação rápida: a leitura do mapa é uma atividade projetiva, como a interpretação de borrões de tinta. Cada um vê ali o que quer ver, e tira as lições que gostaria de tirar.

Algo mais parecido com uma reportagem, e menos com um publieditorial, teria mencionado alguma coisa assim, ao menos para quebrar a tediosa repetição de depoimentos exultantes de gente ou ingênua, ou que ganha dinheiro com o negócio.

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