Pareto, Sturgeon, Campbell e a produção acadêmica
A ideia de que "metade da produção científica nacional é lixo", articulada por um pesquisador entrevistado em reportagem do Estadão que constata que o crescimento da academia brasileira em indicadores quantitativos -- número de mestres, de doutores, publicações -- não representou ganho comensurável de qualidade me trouxe à mente três "leis" mais ou menos empíricas: A Revelação de Sturgeon, o Princípio de Pareto e a Lei de Campbell.
(Confesso que tenho uma queda para máximas com nomes. É um vício principalmente estético-literário, suponho.)
Começando pela Revelação (às vezes chamada "Lei") de Sturgeon: a máxima, segundo diz a lenda, foi elaborada na década de 50 pelo escritor de ficção científica Theodore Sturgeon, cansado de ter de defender o gênero em que escrevia das acusações de ser um campo da literatura dominado por textos fracos, irrelevantes, cheios de clichês. Diz a Revelação: "90% de qualquer coisa é merda".
"Qualquer coisa", no caso, é "qualquer coisa" mesmo: sim, 90% de toda a ficção científica é merda, mas até aí, 90% dos livros com pretensões literárias, 90% da poesia, 90% dos seriados de TV, 90% dos blogs, 90% das reportagens, 90% dos namorados...
Enfim, dada uma categoria à qual algum tipo de classificação por qualidade seja aplicável, 90% dela será, por definição, inferior aos melhores 10%; logo, será composta de algo que um crítico exigente não hesitará em chamar de "merda".
Útil como é para pôr as coisas em perspectiva, a Revelação embute o problema de como comparar as diferentes "merdas". Por exemplo, 90% da produção científica da USP é merda, assim como 90% da produção de Stanford; mas, como diz a mesma reportagem do Estadão que motivou esta postagem, os artigos originados de Stanford são muito mais citados que os originados na USP. Isso quer dizer que a merda de lá é menos pior que a daqui?
A segunda lei que mencionei é o Princípio de Pareto. Segundo a Wikipedia, ele foi generalizado a partir de uma observação feita pelo economista italiano Vilfredo Pareto em 1906, de que 80% das terras da Itália pertenciam a 20% da população. O princípio afirma que, em geral "80% das consequências vêm de 20% das causas". Assim: 80% das vendas seriam feitas por 20% dos vendedores, ou 80% da renda seria gerada por 20% dos consumidores, ou 80% do feijão viria de 20% das plantações, etc, etc.
O Princípio de Pareto é muitas vezes disputado por razões políticas -- críticos dizem que ele é invocado para justificar injustiças na concentração de renda. Mantendo essa crítica em mente, mas levando a ideia para o reino da ciência, poderíamos dizer que, se o princípio for real e não apenas um construto ideológico, é de se esperar que 80% dos trabalhos relevantes venham de apenas 20% dos pesquisadores.
Assim, o único meio de aumentar o número absoluto de trabalhos relevantes seria aumentar o número bruto de cientistas, mesmo sabendo que 80% deles só farão uma ou duas contribuições dignas de nota em suas carreiras.
Por fim, chegamos à Lei de Campbell. Proposta na década de 70, ela tem uma formulação mais complexa que os ditos anteriores: "quanto mais um indicador social for usado na tomada de decisões sociais, mais ele se verá sujeito a corrupção, e mais será capaz de distorcer e corromper os processos que deveria monitorar".
A sentença é longa, mas um exemplo pode bastar: os concursos vestibulares. Criados para monitorar o nível de preparação dos estudantes que desejam ingressar no ensino superior, eles acabaram distorcendo e corrompendo o próprio processo preparatório, transformando o ensino médio numa central paranoica de adestramento e gerando toda a indústria de técnicas mnemônicas que faz a fama dos cursinhos.
Essa lei constata, enfim, que sempre que um índice é canonizado como fonte de informação sobre a realidade social, os responsáveis por essa realidade se veem tentados a adotar políticas casuísticas que afetam o índice, e não a realidade em si. As políticas recentes de "universalização" do ensino superior e de estímulo à pós-graduação são, a meu ver, exemplos claros do efeito.
Mergulhando de vez na subjetividade, eu especularia que a cultura brasileira -- com seu ranço burocrático-bacharelesco, de ênfase excessiva no ritual e na forma em detrimento da substância -- é um campo fertilíssimo para a prática da Lei de Campbell. E que, se as três "leis" citadas aqui têm algum poder explicativo para dar conta da baixa qualidade da produção científica nacional, esse poder reside, principalmente, nesta última.
(Confesso que tenho uma queda para máximas com nomes. É um vício principalmente estético-literário, suponho.)
Começando pela Revelação (às vezes chamada "Lei") de Sturgeon: a máxima, segundo diz a lenda, foi elaborada na década de 50 pelo escritor de ficção científica Theodore Sturgeon, cansado de ter de defender o gênero em que escrevia das acusações de ser um campo da literatura dominado por textos fracos, irrelevantes, cheios de clichês. Diz a Revelação: "90% de qualquer coisa é merda".
"Qualquer coisa", no caso, é "qualquer coisa" mesmo: sim, 90% de toda a ficção científica é merda, mas até aí, 90% dos livros com pretensões literárias, 90% da poesia, 90% dos seriados de TV, 90% dos blogs, 90% das reportagens, 90% dos namorados...
Enfim, dada uma categoria à qual algum tipo de classificação por qualidade seja aplicável, 90% dela será, por definição, inferior aos melhores 10%; logo, será composta de algo que um crítico exigente não hesitará em chamar de "merda".
Útil como é para pôr as coisas em perspectiva, a Revelação embute o problema de como comparar as diferentes "merdas". Por exemplo, 90% da produção científica da USP é merda, assim como 90% da produção de Stanford; mas, como diz a mesma reportagem do Estadão que motivou esta postagem, os artigos originados de Stanford são muito mais citados que os originados na USP. Isso quer dizer que a merda de lá é menos pior que a daqui?
A segunda lei que mencionei é o Princípio de Pareto. Segundo a Wikipedia, ele foi generalizado a partir de uma observação feita pelo economista italiano Vilfredo Pareto em 1906, de que 80% das terras da Itália pertenciam a 20% da população. O princípio afirma que, em geral "80% das consequências vêm de 20% das causas". Assim: 80% das vendas seriam feitas por 20% dos vendedores, ou 80% da renda seria gerada por 20% dos consumidores, ou 80% do feijão viria de 20% das plantações, etc, etc.
O Princípio de Pareto é muitas vezes disputado por razões políticas -- críticos dizem que ele é invocado para justificar injustiças na concentração de renda. Mantendo essa crítica em mente, mas levando a ideia para o reino da ciência, poderíamos dizer que, se o princípio for real e não apenas um construto ideológico, é de se esperar que 80% dos trabalhos relevantes venham de apenas 20% dos pesquisadores.
Assim, o único meio de aumentar o número absoluto de trabalhos relevantes seria aumentar o número bruto de cientistas, mesmo sabendo que 80% deles só farão uma ou duas contribuições dignas de nota em suas carreiras.
Por fim, chegamos à Lei de Campbell. Proposta na década de 70, ela tem uma formulação mais complexa que os ditos anteriores: "quanto mais um indicador social for usado na tomada de decisões sociais, mais ele se verá sujeito a corrupção, e mais será capaz de distorcer e corromper os processos que deveria monitorar".
A sentença é longa, mas um exemplo pode bastar: os concursos vestibulares. Criados para monitorar o nível de preparação dos estudantes que desejam ingressar no ensino superior, eles acabaram distorcendo e corrompendo o próprio processo preparatório, transformando o ensino médio numa central paranoica de adestramento e gerando toda a indústria de técnicas mnemônicas que faz a fama dos cursinhos.
Essa lei constata, enfim, que sempre que um índice é canonizado como fonte de informação sobre a realidade social, os responsáveis por essa realidade se veem tentados a adotar políticas casuísticas que afetam o índice, e não a realidade em si. As políticas recentes de "universalização" do ensino superior e de estímulo à pós-graduação são, a meu ver, exemplos claros do efeito.
Mergulhando de vez na subjetividade, eu especularia que a cultura brasileira -- com seu ranço burocrático-bacharelesco, de ênfase excessiva no ritual e na forma em detrimento da substância -- é um campo fertilíssimo para a prática da Lei de Campbell. E que, se as três "leis" citadas aqui têm algum poder explicativo para dar conta da baixa qualidade da produção científica nacional, esse poder reside, principalmente, nesta última.
Sinceramente: parabéns pelo texto. Excelente mesmo.
ResponderExcluirobs: mas se eu fosse menos elegante, eu diria: "até que enfim um texto decente depois de 80% de merda"
Eu ia comentar que "este post faz parte dos 10%", mas deixou de ser original após o comentário acima.
ResponderExcluirDe qualquer maneira, parecem bem coerentes estes princípios apresentados. Eles podem mesmo se aplicar a praticamente tudo o que neles pode ser encaixado (e digo "praticamente" por pura probabilidade).
Abraço