Medicina no mundo das fadas

Finalmente li a matéria da Veja sobre o "tratamento espiritual" do ator Reynaldo Gianecchini. O texto tem o mérito de ser um pouco menos sensacionalista que as usuais incursões da concorrente IstoÉ no mundo das fadas (o que, de certa forma, frustra as expectativas geradas pela capa).

Mas, ainda assim, não deixa de misturar alhos com bugalhos, pondo no mesmo saco, por exemplo, as recomendações estritamente pragmáticas da chamada "medicina integrativa" e um estudo sobre o poder da imposição das mãos sobre a saúde dos camundongos.

Indo por partes: "medicina integrativa", como fica bem claro na entrevista que a revista faz com um especialista americano, é a ideia de que, se o paciente tem uma superstição que pode ajudá-lo a se sentir mais feliz e tranquilo, o melhor é deixar que ele a pratique de forma controlada, sob supervisão médica e sem atrapalhar o tratamento de verdade. (Esta não é a definição oficial da prática, claro; mas, por baixo de toda a tergiversação condescendente, é a isso que se reduz).

Olhando dessa forma, parece ser uma mera questão de compaixão e bom-senso: ninguém ganha se o paciente decidir fugir da radioterapia para tomar uma garrafada de babosa com mel no meio de uma criação de galinhas do Mato Grosso. Se ele realmente insiste na garrafada, melhor que ela seja levada ao hospital e servida num copo esterilizado. Reduz o estresse e não atrapalha o esforço verdadeiro em busca da cura.

Esse simples pragmatismo psicológico tem, no entanto, dois problemas. O primeiro é o que eu já escrevi lá em cima, a tergiversação condescendente em torno de placebos e conversa fiada.

O segundo é o efeito Cavalo de Troia, pelo qual todo tipo de besteira e charlatanismo acaba ganhando a chancela de "aceito pelos médicos", e o que no fundo não passava de uma estratégia de controle de danos -- como o velho clichê dos pais liberais, "se quer experimentar maconha, faça em casa" -- vira uma espécie de endosso implícito.

A própria matéria da Veja cai nessa armadilha, por exemplo, ao descrever, em tom reverente, o "tratamento espiritual" do ator, que no fim não passa de uma pantomima de tratamento médico, com imposição das mãos fazendo as vezes de "cirurgia" e água benta bebida três vezes ao dia, antes das refeições, como se fosse um anti-inflamatório.

O paralelo com os cargo cults da Polinésia, em que os nativos das ilhas, ignorantes do funcionamento real de rádios e aviões, construíam torres e aeroplanos de bambu, esperando atrair a preciosa "carga" -- as tão admiradas bugigangas trazidas pelos militares americanos -- é quase doloroso de ver.

É claro que não se deve negar consolo e meios de reduzir o estresse a alguém que está enfrentando uma doença potencialmente letal. E se a alternativa a convidar o charlatão ao hospital é ter o paciente fugindo do hospital em busca do charlatão, e morrendo por causa disso, então não parece haver uma alternativa real. Mas também é preciso não fechar os olhos para o impacto mais amplo que essa "solução" tem. Como os troianos aprenderam do jeito mais difícil, é necessário sempre temer os gregos, principalmente quando trazem presentes.


Comentários

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