Fé e saúde: vamos aos fatos, por favor...

Depois da Veja, chegou a vez da Folha correr atrás do trio elétrico do "tratamento espiritual" do ator Reynaldo Gianecchini. Se, por um lado, o texto publicado na edição deste domingo da FSP(linkado acima)  tem o mérito de quebrar um velho vício da mídia brasileira -- o de privilegiar as doutrinas do catolicismo sobre as de todas as demais religiões praticadas no país -- ele o quebra, a meu ver, do jeito errado, estendendo às crenças espíritas o mesmo grau de suspensão do senso crítico de que já gozam as supostas aparições Maria e os alegados milagres de Frei Galvão, Irmã Dulce e João Paulo II.

(Imagino até onde irá esse espírito de cortesia para com as crenças alheias. Será que um dia leremos, numa publicação que se pretende de primeira linha, algo como "Fazer trabalho para amarrar o amor funciona? Quanto a isso, não há consenso, nem mesmo entre as feiticeiras que leem tarô cigano...", ou "Ditadura de partido único funciona? Quanto a isso, não há consenso nem mesmo entre os leninistas...")

A edição do caderno ainda tenta dar algum equilíbrio à pauta, publicando um artigo do editor de Ciência, o heroico Reinaldo José Lopes, mas o texto não só foi parar numa página diferente da reportagem principal, quebrando a unidade do tema, como o título ("Pacientes com fé têm melhoras, afirma pesquisa"), além de ser de uma tolice atroz -- pacientes sem fé também têm melhoras, afinal, ou será que só ateus morrem no SUS? -- basicamente desmente o texto, permeado de advertências sobre o caráter pantanoso da questão.

E o lide, dizendo que o número de curas de câncer "pela fé" parece ser ainda menor que o de remissões espontâneas sem intervenções religiosas, vem enterrado na última linha.

(Para os não-iniciados: "lide", em jargão jornalístico, é a informação mais relevante do texto. Na prática jornalística usual, essa informação deve ser apresentada sempre no primeiro parágrafo. Daí vem a palavra "lide", do inglês lead, "o que vem primeiro", "o que encabeça". "Enterrar o lide" é escondê-lo em outras partes da matéria. Um lide pode acabar enterrado por vários motivos, incluindo falta de tempo para estruturar melhor o texto mas, às vezes, jornalistas optam por enterrá-lo deliberadamente, na esperança de que uma informação desagradável passe despercebida. Uma piada que ouvi certa vez diz que "o lide é como um zumbi: não basta enterrá-lo, é preciso decapitá-lo e cremá-lo".)

Mas, enfim, pondo de lado a vontade de vender ao leitor do jornal dominical a reconfortante e altamente digestiva impressão de que algumas doses de superstição e pó de pirlimpimpim podem, talvez, quem sabe, de repente, até fazer bem, o que se pode afirmar sobre a relação entre fé e saúde?

Alguém realmente interessado em informar objetivamente o leitor poderia ter encontrado na internet um paper da Colaboração Cochrane que conclui que a maioria dos estudos existentes não mostra nenhum efeito positivo das preces sobre a saúde, e outro, publicado em 2002 nos Annals of Behavioural Medicine, concluindo que "há pouca base empírica para se afirmar que envolvimento ou atividade religiosa associa-se a resultados de saúde benéficos".

O trabalho da Annals é especialmente importante porque põe em relevo o fato de que os "fatores religiosos" que parecem fazer bem à saúde são, na verdade, fatores que nada têm a ver com as alegações específicas da religião. Por exemplo: freiras enclausuradas têm pressão arterial menor porque vivem vidas regradas e tranquilas, longe do estresse do dia-a-dia, ou porque estão mais perto de Jesus? O fato de que monges budistas também têm uma saúde cardiovascular invejável sugere fortemente que a primeira opção é a correta. Mas "fé faz bem" deve vender mais jornal que "respirar fundo e relaxar faz bem", suponho.

Por fim, a matéria da FSP menciona os "cirurgiões espirituais" das Filipinas sem citar que eles foram desmascarados, seguidas vezes, como prestidigitadores e charlatães. O que é possível conferir no vídeo abaixo:


Comentários

  1. Como disse Hélio Schwartsman (artigo A Fé na Ciência) "embora a ciência esteja conosco de forma razoavelmente bem estabelecida há apenas 200 anos, já fez mais pelo bem-estar da humanidade do que todas as rezas e mandingas de religiosos durante milênios".

    Mesmo considerando os malabarismos que a racionalização (redundância visto que racionalização implica em malabarismos) dos crentes tem que fazer para explicar o sucesso da ciência ainda tenho dificuldade para compreender porque pessoas que acreditam na providência divina arriscam suas vidas em tratamentos médicos {propriedade tal que propriedade não pertence ao conjunto Perfeição}. Perfeição = {ilimitado, completo, infalível, ...}.

    Como disse em Curitiba é a fé o grande vilão; ateus, céticos, humanistas seculares, divulgadores de ciência... lutam contra os inimigos errados pois combatem apenas os minions da fé. Precisamos encontrar uma maneira de, no mínimo, anular a fé pois só assim as pessoas conseguem considerar outras possibilidades. Temo que este seja um trabalho hercúleo pois contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.

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  2. Carlos, por mais que simpatize com sua crítica às superstições, em alguns casos, como este, ela é formulada de maneira que a faz parecer parcial. É só quando falam de cura espiritual que a Veja ou a Folha "suspendem o senso crítico"? Ou esse argumento é invocado só quando promovem alguma ideia da qual você, pessoalmente, não gosta?

    E quando a Veja, por exemplo, dá matéria de capa para promover um "remédio para emagrecer" não aprovado pela Anvisa e que, segundo os médicos, tem efeitos colaterais sérios e adversos para muitos pacientes? Isso me parece tão prejudicial quanto apelar para "cura espiritual", talvez mais - mas você não fala do assunto. Se a picaretagem é formulada com argumentos científicos, em vez de religiosos, se torna aceitável suspender o senso crítico?

    Sem falar que é esdrúxulo colocar "cura espiritual" e "ditadura de partido único" no mesmo balaio. A primeira é uma questão de fato: se existe ou não, isso pode ser validado empiricamente. Já uma ditadura é uma ação política, cujos resultados são julgados em termos de valores, não de fatos. Não é uma questão de verdade ou falsidade a ser determinada cientificamente, mas de julgamento ético e político de meios e fins.

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  3. Oi, Antônio!

    Quanto à matéria da Veja sobre o (pseudo) emagrecedor, ela obviamente merece umas lambastadas, e já as recebeu, por exemplo, no Science Blogs Brasil (http://scienceblogs.com.br/brontossauros/2011/09/a-veja-e-os-perigos-do-victoza/). A própria prática escusa dos laboratórios, de promover o uso de medicamentos fora das especificações da Anvisa, já havia sido alvo de denúncia até na grande imprensa (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,laboratorios-estimulam-uso-nao-aprovado-de-remedios,268576,0.htm).

    Acabo dando preferência, aqui no blog, à crítica das ações da mídia que parecem legitimar práticas irracionais de matriz religiosa simplesmente porque esse é um tipo de crítica que quase não se vê em outros lugares. A Veja dizer que um remédio para diabete emagrece vira escândalo até no R7 (http://noticias.r7.com/saude/noticias/veja-anuncia-remedio-como-emagrecedor-milagroso-e-prejudica-diabeticos-20110921.html). Já a irracionalidade religiosa simplesmente encontra uma muralha de silêncio e complacência, quando não de cumplicidade, no "mainstream". Daí a minha seleção preferencial de "pautas" para o blog.

    Quanto ao paralelo com os "leninistas", o objetivo era mostrar como a estrutura do parágrafo inicial da reportagem da FSP, que diz:

    "Cirurgias espirituais a distância a que o ator Reynaldo Gianecchini foi submetido recentemente, motivadas por diagnóstico de câncer que atinge gânglios linfáticos, trouxe à tona a questão: afinal, este tipo de procedimento funciona? A esse respeito não existe consenso, nem mesmo no meio espírita."

    Poderia ser usada como uma pseudojustificativa para promover qualquer tipo de "crença", seja qual for sua natureza -- científica, religiosa, ética, política, etc. A palavra-chave aí é "crença", e não o conteúdo específico de cada uma, ou a forma como cada uma é produzida.

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