Religião, política e seus instrumentos
Desconfio de que existem duas ou três teses de doutorado, em História ou Ciências Sociais, esperando para serem escritas, espreitando nas entrelinhas da entrevista concedida pelo cardeal Raymundo Damasceno, presidente da CNBB, e publicada no Estadão deste sábado. Seria possível presumir que, depois de o Princípe da Igreja emitir frases como "não se pode instrumentalizar a religião para obter voto" e "A Igreja não pode ter pretensões de poder", veremos o Padre Marcelo Rossi ser proibido de oferecer o púlpito a candidatos católicos, ou presidenciáveis serem barrados da missa de Aparecida?
Melhor ainda, já que a Igreja não pode ter pretensões de poder, será que o Vaticano passará a não palpitar mais na escolha de ministros do STF? E, já que estamos nessa, vamos rasgar a concordata entre Brasil e Santa Sé? Improvável, temo. Muito improvável. Mas, um pouco de contexto.
As declarações do cardeal surgem em reação aos ataques à Igreja Católica feitos por líderes do PRB, partido que, como parece ser público e notório, não passa de uma marionete manietada por aquilo que os católicos mais pudicos chamam de Universal do Reino (negando, por elipse, que a empreitada religiosa de Edir Macedo tenha legitimidade como "Igreja" ou venha "de Deus"). E o PRB, claro, é o partido de Celso Russomanno, provável futuro prefeito da maior cidade do Brasil.
A Igreja Católica não tem partido próprio, é fato, mas me perdoem se levanto a suspeita de que isso só acontece porque ela está muito bem posicionada em praticamente todos. Da esquerda católica que foi estruturante na formação do PT, à direita católica que é o grande esteio de Geraldo "Quem Não Reage Vive" Alckmin (e, também, de Gabriel Chalita), não falta ao Vaticano quem lute para preservar seus interesses na ecologia política brasileira. Afinal, o que é uma mera aprovação, por uma câmara de vereadores, da construção de templos em locais inadequados frente à aprovação, pelo Congresso Nacional, um acordo internacional inconstitucional?
Acho que aqui cabe trazer à tona a distinção, que li em algum lugar, entre os papéis sociais de "culto", "seita" e"religião". Um "culto" é algo que nega e condena a sociedade maior onde está inserido: para ele, o mundo está perdido, o fim está próximo, todos são pecadores e quanto menos contato se tiver com o "lá fora", melhor. O culto é pequeno, insular, e costuma depender de um líder forte, carismático, para manter a coesão e a fé.
"Seita" é aquilo em que os cultos que duram mais de uma geração costumam evoluir: embora a relação com a sociedade continue meio tensa, pontes começam a ser construídas com "lá fora", e surge uma ânsia por aceitação e reconhecimento -- o preconceito e o escárnio do público externo, antes vistos como distintivos de honra, passam a ser recebidos com ressentimento. O membro da seita luta para provar aos outros que, a despeito de sua metafísica exótica, é "normal".
Já a religião não só afirma e legitima a sociedade mas, em muitos casos, chega a estruturá-la, definindo aspectos fundamentais de sua cultura, seus valores, sua própria identidade. Esse é o papel desempenhado pelo islã em boa parte do Oriente Médio, hoje, e que o catolicismo esforça-se, com as armas de que dispõe -- e que incluem o exercício do poder de chantagem eleitoral sobre políticos que saem da linha -- em continuar a desempenhar em boa parte do Hemisfério Ocidental.
A principal distinção entre a Universal do Reino e a Católica, então, não é a de que (como o cardeal Damasceno gostaria que acreditássemos) a Igreja de Roma não tem "pretensões de poder", mas sim de que as duas instituições estão em pontos diferentes da mesma curva de poder. O Vaticano está mais à frente, lutando para preservar o que resta de seu papel de coluna vertebral da sociedade. A Universal, por sua vez, tenta desabrochar, de seita, em religião.
A diferença de momento histórico vivido ajuda a explicar, também, as diferenças na relação entre política e religião dos dois grupos: a Universal instrumentaliza a fé para promover seus objetivos políticos. A Católica, instrumentaliza a política para impor seus artigos de fé. Você decide o que é pior.
Melhor ainda, já que a Igreja não pode ter pretensões de poder, será que o Vaticano passará a não palpitar mais na escolha de ministros do STF? E, já que estamos nessa, vamos rasgar a concordata entre Brasil e Santa Sé? Improvável, temo. Muito improvável. Mas, um pouco de contexto.
As declarações do cardeal surgem em reação aos ataques à Igreja Católica feitos por líderes do PRB, partido que, como parece ser público e notório, não passa de uma marionete manietada por aquilo que os católicos mais pudicos chamam de Universal do Reino (negando, por elipse, que a empreitada religiosa de Edir Macedo tenha legitimidade como "Igreja" ou venha "de Deus"). E o PRB, claro, é o partido de Celso Russomanno, provável futuro prefeito da maior cidade do Brasil.
A Igreja Católica não tem partido próprio, é fato, mas me perdoem se levanto a suspeita de que isso só acontece porque ela está muito bem posicionada em praticamente todos. Da esquerda católica que foi estruturante na formação do PT, à direita católica que é o grande esteio de Geraldo "Quem Não Reage Vive" Alckmin (e, também, de Gabriel Chalita), não falta ao Vaticano quem lute para preservar seus interesses na ecologia política brasileira. Afinal, o que é uma mera aprovação, por uma câmara de vereadores, da construção de templos em locais inadequados frente à aprovação, pelo Congresso Nacional, um acordo internacional inconstitucional?
Acho que aqui cabe trazer à tona a distinção, que li em algum lugar, entre os papéis sociais de "culto", "seita" e"religião". Um "culto" é algo que nega e condena a sociedade maior onde está inserido: para ele, o mundo está perdido, o fim está próximo, todos são pecadores e quanto menos contato se tiver com o "lá fora", melhor. O culto é pequeno, insular, e costuma depender de um líder forte, carismático, para manter a coesão e a fé.
"Seita" é aquilo em que os cultos que duram mais de uma geração costumam evoluir: embora a relação com a sociedade continue meio tensa, pontes começam a ser construídas com "lá fora", e surge uma ânsia por aceitação e reconhecimento -- o preconceito e o escárnio do público externo, antes vistos como distintivos de honra, passam a ser recebidos com ressentimento. O membro da seita luta para provar aos outros que, a despeito de sua metafísica exótica, é "normal".
Já a religião não só afirma e legitima a sociedade mas, em muitos casos, chega a estruturá-la, definindo aspectos fundamentais de sua cultura, seus valores, sua própria identidade. Esse é o papel desempenhado pelo islã em boa parte do Oriente Médio, hoje, e que o catolicismo esforça-se, com as armas de que dispõe -- e que incluem o exercício do poder de chantagem eleitoral sobre políticos que saem da linha -- em continuar a desempenhar em boa parte do Hemisfério Ocidental.
A principal distinção entre a Universal do Reino e a Católica, então, não é a de que (como o cardeal Damasceno gostaria que acreditássemos) a Igreja de Roma não tem "pretensões de poder", mas sim de que as duas instituições estão em pontos diferentes da mesma curva de poder. O Vaticano está mais à frente, lutando para preservar o que resta de seu papel de coluna vertebral da sociedade. A Universal, por sua vez, tenta desabrochar, de seita, em religião.
A diferença de momento histórico vivido ajuda a explicar, também, as diferenças na relação entre política e religião dos dois grupos: a Universal instrumentaliza a fé para promover seus objetivos políticos. A Católica, instrumentaliza a política para impor seus artigos de fé. Você decide o que é pior.
Excelente texto. Quando eu li essa matéria sobre o Damasceno sendo extremamente hipócrita, fiquei só aguardando os sites e blogs caírem matando em cima. E você fez isso, com estilo, hehe.
ResponderExcluirOrsi,
ResponderExcluirPreciso e correto. O argumento da Católica (não pense que a elipse passou despercebida hehehe) parece em tudo a defesa do livre-comércio pelos ingleses no século XIX (que F. List denunciou como exemplo da estratégia de "chutar a escada"), assim como a defesa hipócrita da paz feita pelos vencedores da 2a Guerra, denunciada por Carr no "20 Anos de Crise". Mas, infelizmente, muito poucos vão perceber a semelhança em hipocrisia dos argumentos e a maioria provavelmente vai elogiar o Bispo pelo equilíbrio e isenção...
Perfeito.
ResponderExcluirBelo texto, Orsi.
ResponderExcluirA Igreja parece querer repetir a história e retomar o poder sobre os homens como na Idade Média. Mas isso, hoje, é difícil de acontecer. Evoluimos, crescemos, conhecemos o mundo em que vivemos, somos livres; libertamo-nos dos mitos, dos dogmas, dos medos. Em função disso, a Igreja, movida por suas ilimitadas ambições imperialistas, busca desesperadamente amparar-se nas elites políticas e nas classes abastadas, a fim de manter seus privilégios e auferir algum poder temporal.
Mas essa mesma Igreja, que já foi a instituição mais rica da terra, que foi proprietária de 2/3 (dois terços) do continente europeu; essa Igreja que nos tempos das trevas assassinava inocentes, queimando-os vivos nas fogueiras da Inquisição; essa igreja, hoje, já não tem a mesma expressão política de outrora, já não desfruta mais de tanta reputação, já não exerce mais influência sobre os fiéis, seja pelo enfraquecimento de sua liturgia, seja pela quebra dos seus dogmas, seja pela dissidência interna que envolve sua cúpula, seja pela decadência moral de seus padres pedófilos. Urge, pois, que essa Igreja repense o seu futuro, volte-se para Deus e siga seu caminho de evangelização, ao invés de ficar por aí distribuindo panfletos e fazendo comícios com "pretensões de poder". Esse empenho da Igreja "às vésperas" da eleição não tem outra finalidade, senão eleitoreira....
A distribuição de folhetos e jornais com conteúdo político, tendencioso e difamatório, destinados a subornar o eleitor cristão nas dependências da Igreja, durante homilias e celebrações, com a conivência de bispos, às vésperas do pleito eleitoral, constitui-se num ato ofensivo ao povo brasileiro, por privar o cristão de exercer a sua cidadania, sitiando-o no seu direito de votar de acordo com a sua escolha, conforme suas próprias convicções.
"Dai a César o que é de César, e a Deus o que de Deus".... Lugar de bispo é na Igreja. Função de bispo é servir a Deus..... Lamentável, pois, ver alguns bispos católicos, retrógrados, rebeldes, assim divididos entre o diabo e Deus.