O baixo-ventre da divulgação científica
A língua inglesa tem uma palavra, underbelly, que comumente é vertida como "baixo-ventre", mas que comporta também o sentido metafórico, meio intraduzível, de face sórdida, oculta, podre e vulnerável de alguma coisa. A expressão sempre me faz pensar no lado de baixo de uma tora caída na floresta, em contato constante com o solo úmido, decompondo-se em gases malsãos e alimentando criaturas assustadoras de todo tipo.
Uma característica perturbadora do underbelly é que, assim como sua tradução literal, o baixo-ventre, ele é parte indissociável do corpo principal: um não existe, não vive, sem o outro. Todas as profissões têm, imagino, seu underbelly, aquela parcela de profissionais que não podem simplesmente ser descartados como corruptos ou renegados como charlatões, mas dos quais os colegas de boa-fé e boa reputação gostariam de se afastar o máximo possível.
Na minha área específica, a divulgação-barra-jornalismo de ciência, o underbelly é formado pela ampla categoria que costumo chamar de "mascates de mistérios": gente que, pelos mais variados motivos -- busca de audiência fácil, viés ideológico ou preguiça de pesquisar direito --, faz de tudo para manter vivas "questões candentes" que, na verdade, estão tão bem resolvidas quanto humanamente possível. Por exemplo: evolução ou criação? Qual o "segredo" do Sudário de Turim? Eram os Deuses Astronautas? Como caíram as Torres Gêmeas? Em Roswell, caiu um óvni ou um balão? Neil Armsotrong e Buzz Aldrin pisaram mesmo na Lua?
A maior expressão desse mercadinho encardido talvez esteja, hoje, nos programas televisivos de alienígenas do passado. Mas é errado imaginar que a divulgação baixo-ventre só se ocupe de temas distantes da realidade imediata: a propagação do criacionismo, para ficar num caso clássico, é uma ameaça constante aos padrões educacionais, e o negacionismo climático dá margem a táticas diversionistas que já ameaçam populações pelo mundo. Mas onde esse pessoal mais causa dano é na área de saúde. Mascates de mistérios adoram associar vacinas a doenças, vilipendiar transgênicos, promover curas improváveis e espalhar boatos irresponsáveis as sobre causas de epidemias.
O que faz do mercadejador de mistérios uma figura exasperante é que, no melhor de sua prática, ele segue, ainda que de modo apenas superficial, as formas e os escrúpulos do jornalismo (ou da divulgação) competente. Nunca passa disso, é verdade -- não há como tirar brilhantismo do baixo-ventre -- mas, ainda assim, competente: o mascate ouve as fontes, procura o contraponto, até avisa que o tema é "controverso". Citando Kevin Burns, criador do malfadado programa Alienígenas do Passado:
"Talvez haja pseudociência apresentada por alguns dos teoristas [que dão entrevistas ao programa]. Não há dúvida de que algumas das teorias apresentadas pelos entrevistados são, mesmo para mim, forçadas. Ou, não sei se são verdadeiras. Eles acreditam que sejam verdadeiras. Permito que nossos apresentadores falem com base em suas próprias pesquisas, suas próprias observações e suas próprias crenças. Aceito a palavra deles. Tudo o que dizemos é que "se isso é verdade, então aquilo também pode ser". Trabalho duro, junto com os produtores do show, para garantir que o narrador nunca diga nada que não seja absolutamente factual. Por exemplo, se a narração diz que um fato ocorreu em 1923, ele aconteceu em 1923. Se ele diz que a ciência oficial acredita em X, então a ciência oficial acredita em X."
A questão é toda essa competência formal é usada -- e talvez eu esteja sendo injusto com algumas pessoas aqui, mas é a única expressão que me parece cabível -- de má-fé. Por exemplo, nem todos os especialistas são "criados iguais". É possível encontrar cientistas com credenciais impressionantes que defendem ideias absurdas, como um psiquiatra de Harvard e ganhador do Prêmio Pulitzer que acreditava que abduções alienígenas são reais.
Esse é um problema velho conhecido no jornalismo dito "feminino" ou "de saúde": dado um tratamento médico/estético qualquer, não importa o quanto seja caro, maluco ou inútil, sempre haverá um(a) médico(a) fotogênico e bem-falante disposto a promovê-lo. O correto, como já sugeria Bertrand Russell em seu ensaio sobre O Valor do Ceticismo, é sempre buscar o consenso dos especialistas na área.
Mas o baixo-ventre foge do consenso: ele ama o dissidente sensacional, e glorifica o papel do "herege". Se ouve mais de uma fonte, seleciona-as de modo enviesado, para obter o máximo de impacto, ou executa um trabalho de edição que desafia as noções mais comezinhas de honestidade intelectual. Quando chamado às falas, o mascate erige-se em defensor da liberdade de expressão, da livre circulação de ideias e coisas assim. Porque, afinal, dissidentes não merecem voz? Isto aqui é uma nova inquisição?
Esse tipo de reação costuma levantar poeira suficiente para permitir ao mascate sair de fininho, mas a resposta correta é: quem divulga algo tem a responsabilidade, primeiro, de selecionar com serenidade o que será divulgado (esta ideia tem alguma relevância real, para além de seu potencial como ímã de cliques? qual a consequência de meus leitores acreditarem nisso?); segundo, de fazer a divulgação oferecendo o contexto adequado. Se a alegação viola a ortodoxia da área, isso precisa ficar claro. Eu mesmo já escrevi sobre algumas teorias fora do mainstream, mas com todas as ressalvas necessárias (espero).
Como escrevi lá em cima, o baixo-ventre é parte indissociável do todo. O mascate de mistérios está para a divulgação científica como a pornografia está para a liberdade de criação artística, ou o "crackpotismo" está para a liberdade acadêmica. Esse fato é frustrante, porque o mascate deixa atrás de si um rastro de erros e incompreensões que o divulgador sério se vê obrigado a retrabalhar e, como dizem por aí, o número de palavras necessário para desfazer uma bobagem é uma função exponencial do número de palavras necessário para dizer a bobagem. Debaixo do tronco não é um lugar agradável de visitar, mas é preciso, de vez em quando, dar uma farejada ali, antes que os gases acumulados estourem de surpresa na cara de alguém.
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