E apresentando: o misoteísmo

Como se já não bastasse toda a confusão terminológica entre ateísmo forte, ateísmo fraco, agnosticismo, deísmo, etc., eis que mais um termo chega à ribalta: misoteísmo. Os leitores de inclinação etimológica certamente já detectaram o prefixo grego "miso", que significa odiar, detestar, ter aversão a, como um misantropo, misógino, misógamo. No caso, então, o misoteu, ou misoteísta, é alguém que tem ódio ou aversão a Deus.

O termo aparece na edição mais recente da revista Free Inquiry -- que alguém com um bom senso de humor já definiu como a "Família Cristã dos ateus" -- que traz uma resenha de um livro chamado Hating God, de Bernard Schweizer. O livro tem como subtítulo The Untold History of Misotheism,  ou "A História Não Contada do Misoteísmo".

(O mesmo número traz um ótimo artigo de Christopher Hitchens sobre a polêmica em torno da posição do papa Bento XVI quanto ao uso da camisinha, desencadeada por um livro publicado na Alemanha, e uma entrevista com o filósofo britânico Stephen Law.)

A tese de Schweizer -- um professor de literatura -- é a de que muitas pessoas, classificadas ao longo da história como ateias ou agnósticas, na verdade caberiam melhor na categoria dos misoteístas. A autora da resenha -- Joyce Salisbury,  uma historiadora -- levanta a suspeita de que o misoteísmo é uma postura mais comum entre personagens de ficção do que entre pessoas reais.

E, realmente, na literatura abundam os misoteístas, começando pela mulher de Jó (autora da única frase sensata de toda a narrativa, "Amaldiçoa a Deus e morre") e passando, claro, pelo Lúcifer de Milton.

A resenha me deixou curioso para ler o livro, e também me pôs a pensar sobre as bases filosóficas do misoteísmo. Que tipo de posição é essa? Imagino que a crença em Deus, tal como proposta pelas religiões monoteístas, implica a aceitação de três proposições:

1. Deus, entendido como um ser onipotente, onisciente e criador do Universo, existe;
2. Deus é bom e é a fonte de toda a lei moral;
3. Deus merece ser adorado e louvado por suas criaturas.

Os religiosos monoteístas argumentam (há séculos e de forma, a meu ver, não muito convincente) que, uma vez aceita a proposição "1", as proposições "2" e "3" decorrem necessariamente. O misoteísta discorda: ele aceita "1", mas acredita no oposto de "2" e "3".

Nesse aspecto, o misoteísmo é uma solução possível para o paradoxo de Epicuro ("Deus não acaba com o mal porque não pode ou porque é maligno") e, diante de tragédias como o recente terremoto  do Japão, soa até razoável.

Ele também oferece uma sofisticação moral que não vemos em muitos cultos religiosos, ao postular que o poder, mesmo o poder infinito, não justifica a adoração e não isenta de crítica. Se há uma ideia capaz de fazer tremer as bases do templo (qualquer templo) é esta. Provavelmente, foi numa tentativa de responder a esta ideia que o Livro de Jó foi escrito, com sua lamentável conclusão de "cale a boca que Eu te devolvo tudo".

Muitos teístas provavelmente consideram que os ateus na verdade são todos misoteístas (se não me engano, Bento XVI ou João Paulo II referiu-se ao ateísmo como uma "reação às injustiças do mundo" ou algo assim), mas tendo a concordar com a autora da resenha: o misoteísmo deve ser mais frequente na ficção que na vida real, já que seu potencial dramático pode muito facilmente levar à paranoia.

Mas, por outro lado, não é paranoia se realmente há Alguém tentando pegar você...

Comentários

  1. Oi, Orsi. Excelente post. Sabe que tem um velho ditado da esquerda que diz o seguinte: não é porque você é paranóico que não tem ninguém te perseguindo.

    abs

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  2. Oi, João! Obrigado! A versão que eu conhecia (e que está adaptada no post) é "Não é paranoia se eles estão mesmo atrás de você..."

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  3. No fantástico Tv Tropes tem uma lista de misoteístas do mundo da ficção: http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/NayTheist

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