Que tal parar de culpar a vítima?
Tenho algumas reservas quanto ao uso amplo que às vezes se dá à expressão "não culpe a vítima". Afinal, há casos em que a vítima é, efetivamente, culpada: motoristas embriagados que se esborracham em postes são um caso óbvio.
O título desta postagem, no entanto, se refere à tendência de "pôr a culpa na vítima" que alimenta boa parte do que passa por cultura de autoajuda no mundo atual -- indo desde as versões evangélicas vendidas nos cultos da prosperidade às formas mais (cof! cof!) sofisticadas de O Segredo e quetais.
Nesta semana, por exemplo, apareceu no quadro de avisos do meu condomínio uma "mensagem edificante", provavelmente impressa da internet, com o título "se não quiser ficar doente..." e que enumera uma série de atitudes que as pessoas que têm a boa saúde como meta devem tomar.
Ali não há nada, no entanto, sobre lavar as mãos antes das refeições, comer vegetais frescos, evitar o álcool e o tabaco ou manter uma rotina de atividade física. As dicas da mensagem são, fundamentalmente: não reprima suas emoções; fale sobre seus sentimentos; seja sincero; não seja perfeccionsita.
Primeiro, fiquei pensando em que mundo viveríamos se esses conselhos fossem seguidos à risca. Imagino pessoas saindo no tapa nas filas de caixa de supermercado (não reprima suas emoções), hordas de chatos insuportáveis babando dores de cotovelo intermináveis no ouvido de vítimas que responderiam chamando-os de vermes nojentos e chutando-os para longe (fale sobre seus sentimentos; seja sincero) e, claro, um aumento brutal no número de acidentes aéreos e automobilísticos, de erros médicos e na condenação de inocentes pela Justiça (pilotos, motoristas, médicos e juízes teriam deixado, junto com todos nós, de ser perfeccionsitas).
Analisada friamente, essa utopia da sinceridade e da espontaneidade é, de fato, uma distopia de preguiçosos, relaxados e malcriados. Mas o principal fator aí é que essa linha de conduta é recomendada para quem não quer ficar doente.
De fato, o texto joga a velha cartada psicossomática: só fica doente quem "merece", seja por conduta, seja por algum tipo de fraqueza de caráter. Essa ideia já foi muito bem explorada na ficção, principalmente na ficção gótica -- por exemplo, no excelente Ligeia, de Edgar Allan Poe -- mas é absolutamente falsa.
Sim, existem hipocondríacos e existe gente (100% da população, eu diria) que poderia se beneficiar de um pouco mais de força de vontade e disciplina quanto à saúde mas, primeiro: disciplina e força de vontade são exatamente o oposto da espontaneidade e do espírito deixa-pra-lá; segundo: pessoas que contraem câncer ou úlcera -- as doenças favoritas dos teóricos da causa psicossomática, a despeito da descoberta de que a gastrite, por exemplo, está ligada a uma bactéria -- já têm o suficiente para se preocupar sem que precisem ficar se sentindo culpadas por o que quer que tenha dado errado em seus organismos.
Culpar a vítima é atraente, em última análise, porque oferece aos acusadores uma sensação de controle: ele ficou doente porque é um estressado; eu, que levo a vida na flauta, não corro esse risco.
Desculpe, gente, mas esse controle não passa de ilusão. Somos todos peões do acaso e, embora algumas atitudes -- lavar as mãos, fazer exercícios, não fumar, não misturar álcool e direção -- possam reduzir riscos, não há como controlar nada. O mundo é uma galeria de tiro e todos, cedo ou tarde, acabamos abatidos. Aprenda a viver com isso e pare de culpar os outros.
O título desta postagem, no entanto, se refere à tendência de "pôr a culpa na vítima" que alimenta boa parte do que passa por cultura de autoajuda no mundo atual -- indo desde as versões evangélicas vendidas nos cultos da prosperidade às formas mais (cof! cof!) sofisticadas de O Segredo e quetais.
Nesta semana, por exemplo, apareceu no quadro de avisos do meu condomínio uma "mensagem edificante", provavelmente impressa da internet, com o título "se não quiser ficar doente..." e que enumera uma série de atitudes que as pessoas que têm a boa saúde como meta devem tomar.
Ali não há nada, no entanto, sobre lavar as mãos antes das refeições, comer vegetais frescos, evitar o álcool e o tabaco ou manter uma rotina de atividade física. As dicas da mensagem são, fundamentalmente: não reprima suas emoções; fale sobre seus sentimentos; seja sincero; não seja perfeccionsita.
Primeiro, fiquei pensando em que mundo viveríamos se esses conselhos fossem seguidos à risca. Imagino pessoas saindo no tapa nas filas de caixa de supermercado (não reprima suas emoções), hordas de chatos insuportáveis babando dores de cotovelo intermináveis no ouvido de vítimas que responderiam chamando-os de vermes nojentos e chutando-os para longe (fale sobre seus sentimentos; seja sincero) e, claro, um aumento brutal no número de acidentes aéreos e automobilísticos, de erros médicos e na condenação de inocentes pela Justiça (pilotos, motoristas, médicos e juízes teriam deixado, junto com todos nós, de ser perfeccionsitas).
Analisada friamente, essa utopia da sinceridade e da espontaneidade é, de fato, uma distopia de preguiçosos, relaxados e malcriados. Mas o principal fator aí é que essa linha de conduta é recomendada para quem não quer ficar doente.
De fato, o texto joga a velha cartada psicossomática: só fica doente quem "merece", seja por conduta, seja por algum tipo de fraqueza de caráter. Essa ideia já foi muito bem explorada na ficção, principalmente na ficção gótica -- por exemplo, no excelente Ligeia, de Edgar Allan Poe -- mas é absolutamente falsa.
Sim, existem hipocondríacos e existe gente (100% da população, eu diria) que poderia se beneficiar de um pouco mais de força de vontade e disciplina quanto à saúde mas, primeiro: disciplina e força de vontade são exatamente o oposto da espontaneidade e do espírito deixa-pra-lá; segundo: pessoas que contraem câncer ou úlcera -- as doenças favoritas dos teóricos da causa psicossomática, a despeito da descoberta de que a gastrite, por exemplo, está ligada a uma bactéria -- já têm o suficiente para se preocupar sem que precisem ficar se sentindo culpadas por o que quer que tenha dado errado em seus organismos.
Culpar a vítima é atraente, em última análise, porque oferece aos acusadores uma sensação de controle: ele ficou doente porque é um estressado; eu, que levo a vida na flauta, não corro esse risco.
Desculpe, gente, mas esse controle não passa de ilusão. Somos todos peões do acaso e, embora algumas atitudes -- lavar as mãos, fazer exercícios, não fumar, não misturar álcool e direção -- possam reduzir riscos, não há como controlar nada. O mundo é uma galeria de tiro e todos, cedo ou tarde, acabamos abatidos. Aprenda a viver com isso e pare de culpar os outros.
Carlos, compartilho contigo a estranheza de culpabilização da vítima tão comum ao discurso de auto-ajuda, especialmente por eu ser Psicólogo e ver com muita frequência as teorias científicas, sérias, da minha área serem esvaziadas pelo senso comum.
ResponderExcluirEntretanto, quero pontuar aqui que a ansiedade obedece ao paradigma do comportamento respondente e, como tal, é desencadeado por situações na vida do indivíduo que “provocam” (o termo correto é eliciam) a ansiedade. É adaptativo, pois a ansiedade prepara o organismo para as duas únicas reações possíveis em situação de ameaça: enfrentar ou correr e compartilhamos esse padrão de comportamento com todos os outros animais, especialmente os vertebrados. Quando nos deparamos com uma situação de ameaça, há uma descarga principal de dois hormônios, a adrenalina e a noradrenalina; quando o organismo é exposto continuadamente a situações ansiógenas, o a exposição excessiva a esses hormônios pode levar ao desgaste dos sistemas controlados por eles, como o muscular, o digestório e o circulatório, entre outros. E esse desgaste pode ocasionar lesões e patologias físicas, como tensão muscular excessiva, gastrite, úlcera, enterite, colite, dentre outras (obviamente a predisposição genética para tais doenças é fator a ser considerado também). Em resumo: nem toda gastrite e úlcera é provocada exclusivamente pela bactéria E. pilori e condições da relação do indivíduo com o ambiente podem sim provocar doenças. O que a psicossomática (teoria com a qual eu NÃO concordo) falha é em considerar que “se o indivíduo quiser, ele pode não adoecer”, o que não é verdadeiro – quase a totalidade dos comportamentos humanos são frutos da interação com o meio e com outros humanos. No frigir dos ovos, o “querer” não é determinante para a mudança e o controle do comportamento.
Caro Carlos, leia o seguinte artigo:
ResponderExcluirhttp://www.abpmc.org.br/revista11n2/A04_a108.pdf
Cuidado com generalizações e reducionismos biologicistas.
Somos organismos vivos em relação com um ambiente, e sentimento e emoções são em partes respostas selecionadas na evolução das espécie para nos capacitar a lidar melhor com situações de grande demanda por sobrevivência. O fato é que essas reações tendem a "forçar" certas partes do organismo mais do que outras, acarretando danos de funcionamento e tecido.
A Psicossomática Psicanalista é uma teoria ultrapassada, eu concordo. Mas existem muitos estudos sérios e cientificos de verdade nesta area como a : Psiconeuroimonologia. Que vem sendo utilizada no tratamento de Lúpos e outras autoimunes.
Sem mais abraço!
Em tempo: a bactéria ligada a gastrite e úlcera se chama H. pylori e não E. pilori, como dito no comentário anterior.
ResponderExcluirJuliano, Marcos, obrigado pelos comentários. São ponderações que enriquecem e ampliam o escopo da postagem. Marcos, grato pelo link! Preciso fazer um treino desses -- até hoje não sei se sou mesmo hipertenso ou se só tenho medo de médico! :-D
ResponderExcluirHehehehe.. Acho que o Juliano compartilha do meu "Olhar Behaviorista" sobre o assunto.
ResponderExcluirNós somos céticos quanto a essas teorias antiquadas e anti-cientificas chamadas de Psicossomática.
Creio que ainda temos muito a aprender de nossos equívocos. Ciência ultrapassada, às vezes, é como moda ultrapassada (http://www.ceticismoaberto.com/ciencia/6100/scott-e-o-escorbuto). Certas concepções e paradigmas vão e vêm, e a sensação de poder conferida pela ciência por vezes obscurece o caminho mais simples e óbvio que não passa por ela (ciência). Não defendo o que chama de psicossomática, mas precisamos pensar se também não aprendemos com ela e com tantas outras "pseudociências".
ResponderExcluirEntão os Titãs estavam certo cantando Epitáfio...
ResponderExcluirAcredito na "força da mente", não dá pra dizer que não existe isso, já viram como Homeopatia funciona em um monte de gente? E água e açúcar nunca curou nada quando eram administradas apresentados dessa forma.
A Psiconeuroimonologia, na minha opinião, só pegou a velha psicossomática e misturou com vagas noções de Imunologia. Os estudos da área estão tão avançados que ninguém ainda sabe quais parâmetros adotar em suas pesquisas. Cada pesquisador escolhe um ao acaso e defende sua posição do porque escolheu, estranhamente existem artigos que avaliam o mesmo parâmetro de formas diferentes. Se em um o autor diz que o aumento na produção de cortisol é resultado de um estímulo psicológico traumático, em outro a redução também o é, mas eles sempre justificam seus achados como resposta as suas teorias. Se isso é científico, não posso dizer.
Sei que tradicionalmente, todas as pessoas no mundo interpretam sentimentos e sensações afetando partes do corpo, afinal, não é clássico descrever a angústia como uma forte dor no peito? Duvido que alguém tenha enfartado de angústia pura, mas digamos que se a pessoa tiver uma pré-disposição isso possa ser o gatilho.
Assim como situações de estresse podem levar a reincidência de doenças latentes como herpes oral. Mas, com certeza, é muito mais do que apenas o comportamento pessoal que está envolvido nesses determinantes...
Meu caro Anonimo,
ResponderExcluirA concepção de comportamento que vc usa não é a mesma que utilizei.
o Comportamento não é apenas uma unidade discreta de resposta do sujeito e "observavel".
Mas é toda e qualquer relação que este possa ter com a parte do universo com o qual se relaciona (incluindo eventos dentro de seu próprio corpo). E podendo ter topografias diversas (Mecânico, Verbal, Privado, Público, Cognitivo, Emocional, etc...)
E este tem multideterminantes em 3 níveis de seleção que se interrelacionam (filogenese, ontogenese e cultura).
Estes determinantes não "causam", mas selecionam padrões de responderes do organismo, e dependento da "contingencia" em que isso ocorre, pode haver a produção de certos "respondentes" mais comumentes chamados de "sentimentos" que são relatados de diferentes maneiras pelo sujeito dependendo da cultura a qual este está inserido (Na língua portuguesa existe a palavra Saudade, não presente no ingles por exemplo, a forma como os americanos experienciam esse sentimento é diferente de nós, pois somos um povo colonizado via Mar, grandes viagens demandavam grandes ausências, e foi totalmente plausivel uma palavra pra descrever todo este estado de coisas ter surgido no idioma do nosso povo, curiosamente o Japão tem uma palavra com o mesmo significado que saudade, outro pais grandemente banhado por mares).
Agora quanto a fenômenos como o "Placebo" ou a tal "Força da Mente" não tem nada a ver com uma entidade chamada Mente, mas são comportamentos ou produtos de comportamentos plausivelmente explicáveis sem ter que recorrer a Fantasias Metafisicas.
Já que este é um blog de Ceticismo quero deixar aberto a denuncia contra o misticismo que ainda teima em reinar na Psicologia.
Eu não disse que a "Força da Mente" é metafísica, e nem acredito que seja a mente, por isso as aspas. Nosso dia-a-dia é apenas regulado por uma seqüencia de reações bioquímicas, certas atitudes podem favorecer a formação de algumas, além de outras e isso manifestar um desequilíbrio no organismo, ou facilitar a ação de outros agressores. Apenas isso. Este é o meu ponto
ResponderExcluirSaudade pode não ter tradução literal em inglês, mas apresenta o seu relativo em "miss you", e deve-se lembrar que os EUA foram colonizados por navegadores ingleses. E isso é irrelevante visto que existe o equivalente a saudade ou nostalgia em todos os idiomas. Quando não tem várias para expressar os diferentes tipos de saudade.
Sei lá, essa discussão não leva a nada. Você deve estar certo na óptica adotada...
To Miss é um verbo, não um substantivo, e não se refere (não é usado para) o mesmo conjunto de eventos que a palavra Saudade e o seu correlato Japonês Itoshii, que alem disso são substantivos.
ResponderExcluirUma cultura tende a subjetivar um verbo quando este é mais bem usado no contexto daquela cultura. E curiosamente tende a se tornar uma causa interna em explicações futuras.
Vide o conceito de mente, ou inteligencia, que só existem no ocidente, e ganharam enorme função após a era de transição entre o feudalismo, onde as relações interpessoais eram mais evidentes, para a sociedade de mercado, onde estas relações se tornaram mais complexas e com isso foram obscurecidas dando inicio o individualismo, que teve seu ponto alto na explicação de Rene Descartes no cógito.
Não nego tudo o que existe de biológico Anônimo, só afirmo que a tendencia de atribuir tudo ao biológico é uma tendencia explicativa (epistemológica) herdeira do individualismo, que tende a obscurecer os determinantes sociais dos eventos comportamentais.
O Organismo não é nada sem a relação que mantém com o ambiente, seja ele físico (quimico-biológico) ou social.
Referências:
Tourinho, E. Z. (2006) Subjetividade e Relações Comportamentais. 1ª Ed. Paradigma, São Paulo.