Meu problema com a blasfêmia

Antes que o título desta postagem cause algum mal-entendido: sou totalmente a favor da blasfêmia. Um dos itens que mais valorizo em minha biblioteca é a clássica edição da revista Free Inquiry que publicou todas -- todas -- as caricaturas dinamarquesas de Maomé que tanto furor causaram alguns anos atrás.

Amaldiçoar, sacanear e ridicularizar divindades é um passatempo antigo e honrado, que deveria ser declarado patrimônio da humanidade pela Unesco. Em linhas mais gerais, eu diria que uma ideia que não é capaz de sobreviver a uma sátira não era uma boa ideia, para começo de conversa.

Meu problema com a blasfêmia, que volta a incomodar por causa da recente onda de violência em reação a uma queima do Alcorão, é outro: por que uma divindade tão maravilhosa, fantástica, onipotente e fodesdástica como supostamente são os deuses que o povo gosta de adorar por aí haveria de se incomodar com sacanagens feitas por merdinhas como nós?


Digo, eu tenho poder de vida e morte sobre as formigas que frequentam a cozinha de meu apartamento. O que elas pensam de mim, no entanto, é totalmente irrelevante: eu as mato quanto elas se tornam um incômodo, mas se elas, por exemplo, leem este blog e detonam tudo o que eu escrevo, isso simplesmente não me interessa. O que me interessa é o fato de elas aparecem dentro do açucareiro!

Então, por que um ser todo-poderoso haveria de se incomodar com o que dizem ou pensam criaturas tão insignificantes como nós? Este é o meu problema com a blasfêmia: a própria noção milita contra a causa das pessoas que acham que blasfêmia é uma coisa grave.

O problema, curiosamente, desaparece se adotamos uma hipótese memética para explicar a religião: de acordo com essa hipótese, ideias como divindade, oração, culto, etc., não têm uma origem sobrenatural, mas são padrões de pensamento e comportamento que se propagam de cérebro em cérebro, de geração em geração, de forma análoga à transmissão biológica dos genes.

Se -- trata-se apenas de um se -- a divindade não é uma Coisa Real, mas apenas um meme, a reação violenta à blasfêmia, de certa forma, se justifica: o ridículo produzido por seres humanos certamente não significa nada para uma entidade todo-poderosa, mas é uma ameaça bem concreta para uma ideia de origem humana.

Seriam, então, as reações violentas à blasfêmia um sinal do reconhecimento da fragilidade da ideia atacada? Eis uma reflexão para o fim de semana.

(Na imagem, o Deus do Trovão, que nunca deu marteladas em blasfemadores)

Comentários

  1. Preciso, como sempre. Teus textos são das poucas leituras que não deixo pra fazer depois, quando recebo os links via twitter.

    ResponderExcluir
  2. "Se -- trata-se apenas de um se -- a divindade não é uma Coisa Real [...]"

    Disclaimer? Está com medo de ofender alguém? :-)

    ResponderExcluir
  3. Orsi, esse sistema de comentários está cada vez pior. Mesmo usando o IE (no meu Firefox não funciona nem com reza brava) eu tenho que tentar várias vezes antes de conseguir postar. Tem algum problema com o Captcha, ele nem sempre aparece.

    ResponderExcluir
  4. Thor nunca deu marteladas em blasfemadores por que seu martelo é beeeem fisico, crente ou não qualquer um hesitaria em blasfemar na frente do Poderoso Thor. Deus também castiga (segundo os crentes) mas seu cajado é metafisico, impõe menos respeito.

    ResponderExcluir
  5. Oi, Mauro! Desculpe a dificuldade... com o Chrome parece que vai bem. Quase nunca tenho dificuldades. Quanto ao "disclaimer", é só para tentar manter o foco da discussão. Pontos metafísicos têm o hábito de sair loucamente pela tangente!!

    ResponderExcluir
  6. Bom, o assunto do dia é o assassinato de várias pessoas no Afeganistão depois que um pastor evangélico americano queimou cópias do Alcorão na segurança do solo americano. E aí, liberdade de expressão ou irresponsabilidade?

    Eu não tenho nada contra os cartuns de Maomé, mas atitudes como a desse pastor me deixam doente.

    -Daniel Bezerra

    ResponderExcluir
  7. Olha, eu diria que o pastor tem o direito de queimar o livro que quiser -- a menos, claro, que seja um exemplar único de obra rara. Isso faz dele um sujeito intolerante, canalha, espírito de porco e inconveniente? É claro que faz. Mas acho que culpá-lo pelas mortes no Afeganistão abre um precedente perigoso, o de legitimar a reação violenta. Uma coisa é ser um imbecil intolerante que queima livros, outra é ser um imbecil intolerante que mata pessoas. Por mim o mundo passava sem ambos os modelos mas, tendo de optar, fico com o primeiro,

    ResponderExcluir
  8. Creio que dá para estabelecer um elo causal de responsabilidade, sim, porque o cara queimou os livros com a intenção de provocar a ira dos outros fundamentalistas malucos. É diferente do caso dos cartuns, em que a intenção era mostrar através da sátira as contradições da "religião da paz e da tolerância".

    Em todo caso, sim, o maluco intolerante é preferível ao maluco assassino. E viva a liberdade de blasfermar!

    ResponderExcluir
  9. ao ler este post e lembrar da infância na escola onde os colegas "blasfemavam" contra as mães uns dos outros e então ver as reações de cada um ... cheguei a conclusão lógica de que mães não existem, são apenas uma idéia frágil

    ResponderExcluir
  10. Não necessariamente, Anônimo. No caso das mães, é óbvio que o "ofendido" é o filho, que se vê compelido a revidar. Certamente, nenhuma mãe equilibrada exigiria vingança de sangue contra um moleque de seis anos que a cita num pátio de colégio. O que sua analogia sugere é que os religiosos ofendidos não são mais maduros que moleques do ensino básico. O que me parece correto.

    ResponderExcluir
  11. religiosos desorientados ofendidos...
    torcedores desorientados ofendidos...
    políticos desorientados ofendidos...
    enfim... quailquer desorientado é capaz disso. (ou orientado de forma errada).
    na verdade, estas situações (ou variações dela) ocorrem em qualquer grupo onde existe uma disputa por dominância, o que existe até no meio científico, não é verdade?
    o fato de você omitir esta questão (desorientação) e ao mesmo tempo se apegar apenas aos religiosos (ignorando as outros grupos) não seria uma questão de correlação e causação?

    ResponderExcluir
  12. O tal pastor quis aparecer, sem dúvida. Mas condená-lo ou considerá-lo "responsável" pelas mortes no Afeganistão corresponde a legitimar a posição de que pessoas que considerarem que sua fé foi ofendida tem o direito de cometer atos de terrorismo.

    Bem, na Índia vacas, ratos e macacos são animais sagrados...

    ResponderExcluir
  13. Aproveitando o imagem do Thor no post vai uma frase que vi em algum lugar: "Deus veio nos proteger do pecadores, mas vejo muitos pecadores; Thor veio nos proteger dos gigantes de gelo, e parece que está funcionando."

    ResponderExcluir
  14. O deus do trovão nunca deu marteladas nos seus blasfemadores, mas seus seguidores, sim:

    http://www.wwgenealogy.com/stnithar_en.htm

    O que reforça a tese de que a única divindade realmente boa é a vaca dos hindus, que dá leite e nunca fez mal a ninguém.

    ResponderExcluir
  15. Sou ateu, graças a deus!

    PS: 'Antonio Luiz M. C. Costa', vacas??? vá dizer isso pro "efeito estufa"...

    PS2: 'Mauro', aqui está tudo normal. Experimente limpar o cache (ferramentas/opções de internet/excluir... mais ou menos isso). Depois vá no "cmd" e digite os seguintes comandos:
    "ipconfig /flusdns"
    e
    "ipconfig /registerdns"

    Pronto, Internet zero bala!

    Flw

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A maldição de Noé, a África e os negros

O zodíaco de 14 constelações e a Era de Aquário

Fenda dupla, consciência, mente, matéria... que papo é esse?