Celular e câncer: lá vamos nós outra vez

Os jornais impressos fizeram um trabalho heroico para pôr em perspectiva a decisão da Agência Internacional de Pesquisa de Câncer (IARC, na sigla em inglês) de classificar a exposição à radiação de celular na categoria de"possível cancerígeno", também chamada de Grupo 2B, mas a mídia eletrônica não teve dúvida em sair berrando por aí que "celular causa câncer" (eu ouvi isso no rádio duas vezes, só nesta manhã).

Então, vamos por partes: não, não há nenhuma prova de que usar celular cause câncer. Não saiu nenhum novo estudo mostrando multidões de usuários com tumores brotando da cabeça.

O Grupo 2B da IARC inclui, entre outros suspeitos, café, isopor, gasolina, óleo diesel e níquel (sim, o metal usado para fazer moedas). Ele reúne substâncias, compostos e situações para as quais a ligação com o câncer é possível, mas onde as provas existentes são insuficientes ou inadequadas.

Acima do 2B existem dois outros grupos, o 2A ("provavelmente carcinogênico") e o IA ("carcinogênico"). No Grupo 2A estão a fumaça de motores diesel e o ambiente de barbearias e salões de beleza. No Grupo IA você encontra o tabaco e a luz do Sol.

Ou seja: embora reconheça que é possível que a exposição à radiação do celular possa causar câncer, a IARC considera que existem provas mais fortes ligando o câncer a coisas como trabalhar como cabeleireiro, respirar nas ruas de São Paulo ou tomar banho de Sol.

Do ponto de vista lógico, para ligar um agente a uma doença, é preciso estabelecer dois tipos de prova -- um mecanismo de ação e uma relação estatística. O mecanismo de ação é uma explicação de como o agente pode levar à doença; a relação estatística demonstra que isso realmente acontece.

A necessidade das duas coisas existe porque quase sempre é possível teorizar um mecanismo de ação, mas sem a estatística não dá para dizer se a teoria corresponde à realidade; por outro lado, estatística sem mecanismo de ação pode levar a falsas atribuições.

Por exemplo, é provável que mais de 80% das crianças que quebram o braço estivessem brincando ao ar livre, expostas à luz do Sol. Mas, sem um mecanismo de ação plausível, fica difícil engolir a explicação de que é a radiação solar o que quebra os ossos.

No caso da ligação celular-câncer, a evidência estatística sempre foi muito fraca, e o fato de a radiação dos telefones ser não-ionizante -- isto é, fraca demais para danificar moléculas como o DNA -- parece excluir qualquer possível mecanismo de ação.

A nota da IARC declara que a evidência de que o uso de celular aumenta o risco de glioma (um tipo de câncer de cérebro) é limitada, e que a ligação entre celular e outros tipos de câncer tem evidência inadequada.

Esses adjetivos em itálico têm significados técnicos precisos na linguagem da IARC, a saber:

Limitado: uma associação positiva foi observada entre a exposição ao agente e o câncer, para a qual uma interpretação causal é considerada plausível, mas o acaso, erros ou fatores alheios não podem ser excluídos com confiança.

Inadequado: os estudos disponíveis têm qualidade, consistência ou poder estatístico insuficientes para permitir uma conclusão sobre a presença ou ausência de uma associação causal entre exposição e câncer, ou não há dados sobre o câncer em humanos.

Num estudo que provavelmente reflete o pior caso analisado pela IARC, o uso de celular por mais de meia hora ao dia, durante dez anos, parece ter aumentado o risco de glioma em 40%.

Isso não significa que as pessoas que usaram o celular dessa forma passaram a ter uma chance de 40% de desenvolver câncer no cérebro, mas sim que o risco básico, que todos corremos, é 40% maior em usuários contumazes de celular -- se o estudo estiver certo, coisa de que nem a IARC tem certeza.

Esta fonte dá como risco de glioma na população em geral uma taxa de 3 em 1000, ou 0,3%. Um aumento de 40% eleva o risco a 0,42%.

O que me parece é que a IARC está apelando para a velha máxima better safe than sorry ou, no vernáculo, seguro morreu de velho. Mas, se você vai se preocupar com os cancerígenos no seu ambiente, eu sugeriria que começasse usando protetor solar antes de sair de casa -- e que tomasse cuidado com a fumaça dos caminhões na rua.

Comentários

  1. Eu tenho conhecidos adeptos de estilos de vida "natureba" que meses atrás estavam histéricos com essa possibilidade -- tudo porque tinham instalado uma rede wi-fi em casa e começaram a ler certos sites picaretas... além de um condomínio vizinho ter permitido uma antena de celular pequena, distante uns bons 70m da casa deles.

    Imagino que o nível de histeria dessas pessoas deva estar em alta. Ao mesmo tempo, sei que eles não dispensam uma praia em horários impróprios, ou um cigarrinho ocasional...

    -Daniel Bezerra

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  2. Parece um bom momento para comprar o seu 'Surrogate', imagino...

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  3. Excelente, Carlos. Um necessário esclarecimento, pois um número assustador de cidadãos já está a dar como certo a ligação entre o uso deste aparelho e o surgimento de câncer. O que não é de se espantar, ao somar o sensacionalismo da mídia mais a ingorância da maioria da população. Parabéns, mais uma vez.

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  4. Ótimo.

    Tenho sentido falta recentemente de material a respeito do risco de torres de celular para moradores de casas/apartamentos próximos de onde estão instaladas. Alguma indicação?

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  5. Daniel,

    Não faz muito tempo, saiu o resultado de um grande estudo sobre correlação entre torres de celular e incidência de câncer. Os resultados foram inconclusivos -- ou seja, não se encontrou nexo causal entre as duas coisas. Não quer dizer que NÃO acontece nada, mas também não quer dizer que acontece.

    Se quiser a minha opinião como físico, é a seguinte: celulares (e suas antenas) operam com microondas. Não são radiações ionizantes, tais como o subproduto de decaimento nuclear; mas também não são 100% inofensivas. Nada é. Eu, por exemplo, sinto dor de cabeça se alguém fica me "alugando" pelo celular por dez minutos ou mais.

    Se isso o preocupa, eu aconselharia a limitar o tempo de conversas e o número de vezes que se usa o celular. Prefira usar bluetooth, viva-voz, ou fones de ouvido sempre que der. Não dê um celular para crianças; prefira tablets. E só aceite que seu condomínio instale antenas no telhado se o pagamento foi muito, muito bom.

    E lembre-se sempre de passar protetor solar quando sair na rua. O sol é mais perigoso - e mais certo de dar câncer - do que celulares.

    -Daniel Bezerra

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