Minhas objeções ao politicamente correto

No ano passado, o blogueiro de ciência Roberto Takata publicou uma longa e bem-pensada postagem em defesa da preocupação com o politicamente correto; outro dia, o médico e escritor de ficção científica Flávio Medeiros fez uma longa postagem em tom de desabafo no sentido oposto. O texto de Medeiros não é uma resposta direta ao de Takata, mas a justaposição de ambos me levou a, finalmente, pôr no papel (ou no servidor) meus pensamentos a respeito.

Acho que um bom jeito de começar é tirando um bode da sala -- no caso, o fato de, no Brasil, a expressão "politicamente incorreto" ter virado um eufemismo (politicamente correto?) para grosso, malcriado, escroto. Nesses casos, a solução é milenar: em companhia civilizada, quem comete grosseria perde credibilidade e, se insistir, é gentilmente convidado a se retirar. Criança malcriada vai pra cama mais cedo, sem videogame, televisão  e com mesada cortada. Adulto malcriado deve ser ignorado, desprezado ou, em casos extremos, entregue à polícia. Cantada escrota rende tapa na cara. Simples assim.

(Em tempo: a ideia de que bons modos, consideração e simples cortesia devem ser estendidos a todos, e não apenas a uma determinada classe, grupo étnico, etc, não é uma bandeira "politicamente correta", mas mero bom-senso republicano.)

Enfim, uma vez que deixemos de equalizar "ser politicamente correto" com "honrar a educação que mamãe me deu", o que resta? E isso que resta, presta?

Acho que o leitor já deduziu, a partir do título desta postagem, é que em minha opinião há, sim, resíduos, e que, não, esse resíduos não prestam lá muito. Os resíduos que vejo seriam:

1. Determinismo etimológico: "denegrir" e "judiar" viram palavras malditas porque têm conotação negativa e, oh, céus, contêm alusões a "negro" e "judeu" em sua morfologia. Tá. E quantos usuários atuais da língua sabem disso? E, dos que sabem, quantos consideram essa ligação algo além de uma mera curiosidade histórica? O determinismo etimológico faz tábula rasa da história da língua, e atribui aos usos de hoje as (presumidas) intenções de ontem.

2. Descontextualização paranoica: expressões como "a coisa está preta" ou "nuvens negras no horizonte" são transmutadas em ditos racistas. Como assim? Certa vez, discutindo o assunto com um colega de redação, perguntei: "Por esse raciocínio, a criança que chora de medo do escuro quando os pais apagam a luz do quarto é racista". E ele concordou...

3. Raciocínio mágico: no fim e ao cabo, o politicamente correto acaba sendo uma espécie de nova superstição, como a das vovós que dizem "aquela doença" em vez de "câncer", ou o pessoal que bate na madeira antes de falar em coisas desagradáveis. Trata-se de uma fé no poder dos nomes que lembra o credo dos antigos demonologistas, para quem conhecer o verdadeiro nome de um demônio significava controlá-lo. Isso me parece  mais uma power-trip de acadêmicos de humanidades, principalmente do pessoal da linguística e da crítica literária, do que qualquer outra coisa ( "Os Físicos fazem lá as bombas atômicas deles, mas nós vamos transformar a sociedade por meio das palavras, sem que um só tiro seja disparado!").

Mas o efeito me parece ser mais o de uma atenuação das consciências do que qualquer outra coisa: os aleijados viraram deficientes, que viraram portadores de necessidades especiais, mas os ônibus adaptados ainda são poucos, e tente pegar um táxi em São Paulo usando cadeira de rodas. Por outro lado, "fogo amigo" e "dano colateral" soam bem melhor que "mortos por engano".

Comentários

  1. Salve, Orsi,

    Pois então, vc está pegando um aspecto menor do PC - o dos nomes.

    E pegando alguns exageros.

    Para quem tem problemas físicos, ser chamado de deficiente é muito melhor do que ser chamado de aleijado. Nomes não são tudo, mas fazem diferença - há estudos psicológicos que indicam isso.

    Transporte público adaptados fazem parte do PC.

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Eu ia fazer uma postagem mais ampla, mas acabei me restringindo ao aspecto linguístico exatamente para não perder o foco... Minha impressão é de que muita coisa que passa por PC realmente não é nada além de republicanismo puro e simples -- todos são iguais perante a lei têm o mesmo direito a respeito e consideração (o caso da união gay é um exemplo disso).

    Pensei em entrar na questão do "entitlement" que o PC atribui às minorias, mas concluí que essa é uma discussão para uma postagem à parte...

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  3. Sobre o republicanismo -- ou simples boas maneiras, uma citação de um certo homem da Ciméria:

    "Civilized men are more discourteous than savages because they know they can be impolite without having their skulls split, as a general thing."

    -Daniel Bezerra
    -Conan the Barbarian

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  4. Orsi, na minha opinião, o falar PC é o contrário de republicanismo ou bons modos: é impor o desejo e a interpretação de alguns sobre a maioria. Em outras palavras, fascismo.

    Os bons modos se baseiam em um certo consenso de quais termos são adequados ou não. O PC se baseia em um pequeno grupo decidindo que determinado termo é inapropriado e deve ser substituído por outro, e exigindo que todos aceitem esta decisão.

    No caso mais clássico, querer que se diga "uma pessoa afroamericana" no lugar de "uma pessoa negra" exige que eu pratique um preconceito. Eu sei que uma pessoa é negra ao vê-la. Mas não posso saber sua origem geográfica; posso supor, isto é, formar um pré-conceito, para copiar o didatismo dos sociólogos e antropólogos. Essa pessoa pode, aliás, ser afroeuropéia, ou afroasiática. Ou apenas africana. Ou pode ser indiana, e nada ter a ver com a África.

    Pergunto: eu tenho o direito de decidir, sozinho, que ser chamado de branco é ofensivo, e exigir ser tratado de euroamericano, ou eurobrasileiro, ou quem sabe ítaloeslavobrasileiro?

    No fundo, acho que a sua idéia do power trip ainda é a explicação. E não há quem adore ter um poder, mesmo que seja só o de mandar nos outros em coisas sem consequencias.

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  5. Tem sim, bastante coisa a ver com o que se chama de republicanismo. Embora não seja de todo coincidente - não sei se há zonas de conflitos, suponho q não. Do mesmo modo ambos têm a ver com ética - poderia se dizer dos dois termos que não têm nada além da boa e velha ética. Mas a ideologia PC tem mais a ver com cidadania e justiça social.

    Ironicamente, o termo PC foi usado inicialmente pela própria esquerda de modo irônico - pois à época (lá pelos 1970), a correção política tinha outra conotação. O republicanismo, por exemplo, estava pouco a se importar com as questões da discriminação.

    []s,

    Roberto Takata

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  6. Lembrando que os gulags soviéticos eram "Centros de Correção Política", se não me falha a memória... :)

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