A maconha e a marcha

O fato de as chamadas "marchas da maconha" ainda serem consideradas "polêmicas" é um dos sinais do quanto ainda estamos longe de uma cultura democrática digna do nome.

O direito dos cidadãos de protestar pacificamente para pedir mudanças na lei é um dos pilares da democracia moderna -- na Carta de Direitos da Constituição dos EUA, aparece logo no primeiro item, junto da liberdade de expressão e da de religião -- mas, aqui no Brasil, as pessoas ainda parecem achar que liberdade de manifestação é liberdade de manifestar  concordância com o senso comum (ou, pelo menos, com um lobby bem endinheirado).

Claro, em sendo a manifestação uma passeata, as autoridades têm de levar uma série de fatores em consideração antes de autorizá-la, mas esses fatores são (ou deveriam ser) o impacto do evento na vida da cidade e no direito de ir e vir dos demais cidadãos e não, ora bolas, o tema da manifestação em si.

(Cá entre nós, a lei brasileira contra a "apologia do crime" é mais uma mordaça discricionária à disposição do Judiciário do que uma tentativa real de evitar à incitação ao ilícito; aliás, a lei seria muito menos autoritária se se trocasse "apologia" por "incitação" no texto; fica a dica ).

Tendo dito tudo isso, ressalvo que defender o direito à marcha não significa concordar com a petição que a marcha busca promover. O debate sobre a descriminação da maconha (e das drogas em geral) é cheio de paixões e posições hidrófobas -- de ambos os lados, diga-se, embora a ala conservadora tenha mais espaço na mídia.

O argumento mais repetido pelos adversários da legalização da maconha é o da "porta de entrada" -- a maconha seria um primeiro passo para o mergulho no mundo das drogas pesadas. No entanto, um estudo publicado em 2003 demonstra que, embora o efeito "porta de entrada" seja plausível, os argumentos usados para defendê-lo também justificam uma hipótese alternativa -- a de que existe um tipo de personalidade com propensão ao uso de drogas, e que pessoas com esse tipo de personalidade tendem a buscar substâncias cada vez mais pesadas. Diz o texto:

"O estudo demonstra que a associação entre maconha e o uso de drogas pesadas pode ser esperado mesmo se a maconha não atuar como porta de entrada. Em vez disso a associação pode resultar das diferenças de idade em que os jovens têm oportunidade de usar maconha ou drogas pesadas, e variações conhecidas na disposição dos indivíduos de buscar drogas."


De acordo com um dos autores, "pessoas predispostas a usar drogas e com a oportunidade de usar drogas têm maior probabilidade do que outros de usar tanto maconha quanto drogas pesadas (...) A maconha tipicamente vem primeiro porque está mais disponível".

(Eu, de minha parte, me pergunto até que ponto esse efeito "porta de entrada", se é que existe, não deriva exatamente do fato de que a maconha é ilegal. Hoje em dia, o mesmo traficante que oferece cannabis provavelmente também tem acesso a cocaína, por exemplo, e está disposto a oferecê-la ao cliente; mas se os cigarros de maconha fossem legalmente vendidos em padarias, é improvável que a mocinha do caixa também tivesse papelotes escondidos debaixo dos drops de horletã.)



Já um argumento que comumente aparece na boca dos defensores da erva é o de que a maconha pode ser benéfica para a saúde, e certamente é menos maléfica que o cigarro. Embora algumas partes do mundo aceitem o uso de maconha com fins medicinais -- para reduzir a pressão intraocular de pacientes de glaucoma ou como sedativo em casos de doentes terminais -- a alegação de que a cannabis é menos prejudicial que o tabaco não se sustenta.

Estudos publicados nas últimas décadas mostram que a maconha aumenta o risco de câncer de pulmão, que o alcatrão da maconha se acumula mais nos pulmões que o do tabaco e que a cannabis representa um perigo para a sobrevivência de pessoas com problemas cardíacos. Numa nota subjetiva e totalmente pessoal, acrescento que a fumaça da maconha fede muito mais que a do cigarro (ao menos na minha época, era impossível estudar Jornalismo sem acabar exposto a ambos os tipos de nuvem tóxica).

Dada a a falta de substância das alegações de parte a parte, como ficamos?

Uma coisa que causa -- ou deveria causar -- estranheza na questão das drogas é o simples fato de haver drogas proibidas. Na tradição liberal, todo ser humano é proprietário do próprio corpo, e faz com ele o que quer, desde que não cause dano à vida ou à propriedade de outras pessoas. Quem, portanto, é o governo para dizer o que um cidadão pode ou não consumir? Por que homens e mulheres livres e maiores de idade toleram que o Estado determine o que podem ou não introduzir em suas veias, pulmões ou narinas?

Drogas de uso dito "recreativo" afetam o indivíduo e a sociedade. Os efeitos no indivíduo são os que se fazem sentir sobre sua saúde, sua capacidade de gerar renda, seu círculo de relações, seu livre arbítrio; na sociedade, são os que afetam os sistemas de saúde pública, a economia, a segurança pública e, claro, o aparato policial-judicial. O poder do Estado de proibir algumas drogas busca justificativa nessas duas dimensões.

Na dimensão individual, a proibição das drogas se apoia nos argumentos do dano e do vício. O argumento do dano alega que a droga faz mal à saúde, e que o Estado tem o dever de proteger a saúde de seus cidadãos; o do vício, que a droga gera dependência, o que faz com que o usuário deixe de ser um agente livre e, portanto, passe a precisar da proteção paternal do Estado na supressão da substância viciante.

Esses são talvez os argumentos mais fracos pró-proibição. Aceitos, eles requerem não só o veto à maconha, à cocaína e à heroína, mas também ao tabaco, ao álcool e ao café, sem falar na carne vermelha e no chocolate.

Na dimensão social, a proibição se apoia nos custos -- econômicos e emocionais -- da droga, do tratamento dos problemas de saúde que ela causa, da perda de vidas e de produtividade dos usuários e dos elos entre a droga e o crime, principalmente o crime organizado.

O ponto saliente dessa linha argumentativa é que, com exceção da questão do crime organizado, todos os problemas citados também existem em relação ao álcool e ao tabaco, ambas drogas aceitas e toleradas.

O alcoolismo destrói famílias, alcoólatras às vezes reduzem-se a mendigos ou ladrões para sustentar o vício, o álcool gera absenteísmo no trabalho; o tabaco reduz a expectativa de vida, a produtividade, e a nicotina é uma das substâncias mais viciantes conhecidas. Esses custos sociais são assimilados pela comunidade, como um todo, em nome do respeito pela liberdade individual.

Parece-me que o ponto que distingue o impacto social das drogas ilegais das legais -- o crime organizado -- é fruto direto, e não causa, da proibição. Como já disse um historiador americano, antes da Lei Seca, a Máfia prestava serviços aos políticos; depois dela, os políticos passaram a prestar serviços à Máfia.

É por isso que não creio que houvesse traficantes ma Marcha da Maconha: eles certamente não querem a concorrência da Souza Cruz.

Comentários

  1. Nossa legislação na verdade não coíbe tanto o usuário, é mais o traficante - embora alguns juízes precisem ser atualizados e também ações policiais.

    Pensemos no caso de um medicamento vendido para combater a obesidade, mas q se saiba causar problemas cardíacos graves. Acho que a maioria reclamaria se as autoridades sanitárias não banissem esse medicamento.

    E mesmo aceitando a premissa de que, em um lugar em que tanto o álcool quanto um psicotrópico xis estivessem legalmente liberados, o álcool causaria mais problemas sociais e de saúde; o argumento só valeria se fosse pra *trocar* o álcool pelo psicotrópico xis, não pra liberar os dois com base em: "se o álcool que já faz mal é livre, então deveria liberar xis que faz menos mal tb".

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Concordo, Orsi. Se o estado se arroga o direito de intervir na liberdade do cidadão com a desculpa de protegê-lo, então deve no mínimo ser coerente: se maconha faz mal, álcool e tabaco também. Se maconha vicia, álcool e tabaco também. Se o excesso de maconha pode levar à morte, álcool e tabaco também. Seria obrigação do estado apresentar dados científicos que provassem que maconha é *mais* danosa, mas estes dados não existem.

    O que existe é um conjunto de diversos interesses, apoiados por um grande número de pessoas desinformadas e preconceituosas.

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  3. Roberto, muitos medicamentos tem efeitos colaterais. A indústria, os médicos e as autoridades pesam cuidadosamente os prós e os contras para avaliar cada caso.

    Mas não estamos falando de medicamentos, mas de subtâncias "recreativas", como disse o Orsi. Neste caso, assim como há gente que acompanha o jantar com uma taça de vinho, há gente que bebe até cair desmaiado na sarjeta; e assim como há gente que gosta de um baseado no fim de semana, há gente que passa o dia fumando maconha.

    No direito romano havia um preceito que diz "O abuso não exclui o uso", mas, mesmo que o nosso direito queira ignorar este princípio, continuo achando que a coerência continua necessária:

    Se a maconha deve ser proibida para _todos_ por causa do perigo de _alguns_ abusarem, então álcool e tabaco devem ser proibidos também.

    E como já lembrou o Orsi, o próximo passo é proibir o churrasco, o sorvete, a batatinha Ruffles...

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  4. "Uma coisa que causa -- ou deveria causar -- estranheza na questão das drogas é o simples fato de haver drogas proibidas. Na tradição liberal, todo ser humano é proprietário do próprio corpo, e faz com ele o que quer, desde que não cause dano à vida ou à propriedade de outras pessoas. Quem, portanto, é o governo para dizer o que um cidadão pode ou não consumir? Por que homens e mulheres livres e maiores de idade toleram que o Estado determine o que podem ou não introduzir em suas veias, pulmões ou narinas?"

    É complicado. Mas "cada um sabe de si", não raro, é uma utopia.

    Digamos que não com a droga, mas com o viciar-se, não há com o que dialogar. Seja por um momento de fraqueza, uma ação impensada, peer pressure, maior pré-disposição ou sincera desinformação; viciar-se -- clinicamente, diagnosticadamente falando, não por modinha basbaque quando não deformação de mídia de falar em "viciar/viciado" -- é por um grilhão, uma corrente, é um escravizar do ser. A liberdade é trocada por um mata-leão na neuroquímica do indivíduo. E não deve toda a escravidão ser combatida?

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  5. Irretocável artigo, lúcido num mar de excessos de um lado e de outro.
    E só para complementar que existe o crime de apologia ao crime, mas ao lado dele o de incitação ao crime, artigos 286 e 287 do Código Penal. São coisas diferentes em aspecto e intensidade (e concordo ainda que em termos de sua opinião sobre a apologia)

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  6. A bem da verdade, taí: a relação do viciar-se, seja ao quê. Se formos obter controle sobre nossa genética, como penso que teremos, haverá um dia algum Direito Humano convertido em dispositivo legal estabelecendo que cada indivíduo poderá ter acesso à informação de seu próprio código genético, no que tange suas fraquezas e pontos fortes, para que melhor se entenda e possa se desenvolver - informação incluindo sobre o que evitar, o quanto evitar, que poderá servir tanto ao esclarecimento quanto a novos fetichismos e até demonizações, de hábitos ou indivíduos.

    Fora o grau de controle sobre a genética, eliminando predisposições hereditárias contra sua saúde, especialmente se assim quiserem os pais, que são, teoricamente, quem melhor entende do que é bom para seus filhos, mesmo se ainda sequer nasceram, e aí, é claro, é contar com o torcer de rabo da porca.

    Fora que os eugenistas e homofóbicos terão um novo round, imagino... haveria que se por ética na tal da genética.

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  7. Microempresário disse...
    "A indústria, os médicos e as autoridades pesam cuidadosamente os prós e os contras para avaliar cada caso."

    Deveriam, mas não é bem assim - mais próximo da verdade seria dizer: não é nada parecido com isso.

    Mas a pesagem cuidadosa dos fatores é o se pede para este caso específico da canabis.

    "Mas não estamos falando de medicamentos, mas de subtâncias "recreativas", como disse o Orsi."

    De um lado há usos médicos indicados para a marijuana. Mas mesmo a questão recreativa tem um paralelo com os medicamentos - é o lado positivo de qualquer produto.

    "Neste caso, assim como há gente que acompanha o jantar com uma taça de vinho, há gente que bebe até cair desmaiado na sarjeta"

    Do mesmo modo como há pacientes em que um dado medicamento banido teria um bom efeito.

    Ou pensemos em granadas. Há cidadãos que fariam bom uso delas - recreativo que fosse. Mas há, novamente, o perigo que a liberação do comércio de granadas traz.

    Não é um princípio único que guia a ponderação da questão. "Abusus non tollit usum", ok, mas se contarmos só com isso, *tudo* será liberado.

    "Se a maconha deve ser proibida para _todos_ por causa do perigo de _alguns_ abusarem, então álcool e tabaco devem ser proibidos também."

    Talvez. Iria uma longa discussão nisso. De todo modo, vc está enxergado aí o limite só de uma ponta. O limite da outra ponta são os medicamentos banidos e as granadas: o raciocínio é invertido "se vamos liberar a maconha por _alguns_ não abusarem, então bombas atômicas devem ser liberadas também".

    "E como já lembrou o Orsi, o próximo passo é proibir o churrasco, o sorvete, a batatinha Ruffles..."

    Não. Isso se chama "falácia do declive escorregadio". Veja que a maconha *já* é proibida. Churrasco, sorvetes, batatas fritas, álcool e tabaco não. Então não há essa progressão.

    []s,

    Roberto Takata

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  8. Roberto, concordo que bombas atômicas não devem ser liberadas. Quanto a granadas, estatuto do desarmamento, etc., é outra discussão.

    Mas note que não estou pedindo a liberação da heroína, do crack e do C4. Note também que no meu primeiro comentário eu disse "Seria obrigação do estado apresentar dados científicos que provassem que maconha é *mais* danosa [...]" E eu ainda não vi nenhum estudo que me parecesse minimamente neutro ou confiável provando isso.

    E quanto a "falácia do declive escorregadio", note:
    - Tabaco era consumido por toda parte há vinte ou trinta anos atrás. Agora é cada vez mais restrito. A cidade de Nova York acaba de proibir o fumo ao ar livre em praças e parques públicos.
    - Já há várias leis proibindo a venda de alimentos considerados "nocivos" em escolas, incluindo sorvetes e batatas fritas. O argumento é que crianças não conseguem resistir ao apelo publicitário.
    - Em muitos países o consumo de álcool em público é proibido. Em muitos países, a permissão para um restaurante vender bebidas alcoólicas depende de licenças especiais. Etc,etc,etc...

    Em resumo: há progressão sim. Nem sempre percebemos, mas há.

    Cada uma destas restrições tem argumentos plausíveis. No conjunto, significam que a liberdade individual de decidir está sendo paulatinamente restringida; a consequencia disto é uma infantilização da sociedade, que passa a assumir como verdade a idéia de que o governo sabe melhor que nós mesmos o que é bom para nós.

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  9. Mas para completar: meu argumento principal sobre a maconha não é esse. O que ocorre é que a maconha é consumida livremente no Brasil, desde que vc tenha as amizades certas e reserve uma quantia para "resolver o problema" quando algo der errado.

    Por coincidencia, o Roberto me forneceu um bom "gancho" quando usou a granada como exemplo. A questão das armas e a das drogas é tratado no Brasil com a mesma hipocrisia, demagogia e ignorância. Sim, granadas são proibidas. E são encontradas com a maior facilidade, bem como fuzis, pistolas e metralhadoras, em qualquer favela, ops, comunidade.

    Se houvesse o mais tênue indício de que as autoridades brasileiras tem a intenção de colocar em prática a proibição da maconha (ou do desarmamento), eu até poderia apoiar a idéia. Mas a realidade é que a proibição e criminalização das drogas sempre foi e sempre será uma forma de vários grupos de pessoas ganharem dinheiro; muito dinheiro.

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