Homeopatia, espiritismo e o poder de uma hipótese

Não sei como andam as coisas nas editorias de Ciência dos jornais hoje em dia, mas nos anos em que cuidei do assunto, no Estadão.com.br, era com uma certa frequência -- digamos, uma vez a cada trimestre -- que aparecia, na caixa de e-mail ou entre as sugestões trazidas por colegas de outras áreas, a notícia de um estudo "provando" a eficácia da homeopatia em animais (ou no combate de alguma aflição humana específica) ou de uma pesquisa a confirmando a existência de forças espirituais, e/ou a respeito do "poder de cura" de certas práticas mediúnicas.

Exatamente uma única vez, chamaram-me a atenção para um trabalho realizado na UnB que teria provado a validade da astrologia.

Estudos assim sempre me deixavam estupefato. Se tivessem sido realmente bem executados e suas conclusões fossem válidas, deveriam estar sendo publicados na Science ou na Nature -- sendo esta última, historicamente, uma publicação bastante aberta a conclusões polêmicas, tendo dado guarida, por exemplo, a trabalhos sobre Uri Geller e à famigerada tese da "memória da água".

Além disso, os autores de descobertas tão revolucionárias certamente apareceriam na linha de frente para um ou dois prêmios Nobel!

Curiosamente, no entanto, essas provas destruidoras de paradigmas geralmente eram fruto de dissertações de mestrado ou teses de doutorado -- passando, portanto, por fora do sistema de revisão pelos pares -- e, quando eram publicadas em periódicos especializados, acabavam aparecendo em revistas "de nicho", já ideologicamente predispostas a aceitar as conclusões oferecidas e a acatar metodologias pouco ortodoxas.

(A tese do "boicote dos homens de preto" -- de que existe uma conspiração universal da indústria farmacêutica com o Vaticano e sabe-se quem mais para manter a humanidade ignorante das Grandes Verdades -- falha em explicar como os estudos sobre Geller e homeopatia foram parar na Nature em primeiro lugar, e também como toda a "sabedoria alternativa" rejeitada pela "ciência oficial" acaba chegando às listas de best-sellers, enquanto que artigos científicos sérios geralmente se veem restritos a um pequeno número de especialistas: se há uma conspiração, ela na verdade parece operar no sentido oposto.)

O mais recente caso de um estudo "alternativo" que chegou a uma publicação mainstream foi o trabalho de Daryl Bem, que já comentei aqui. Esse estudo provocou várias reações, entre elas uma resposta de pesquisadores da Universidade de Amsterdã que põe em relevo os principais problemas com estudos feitos na tentativa de provar a existência de algum fenômeno extraordinário.

A principal dificuldade, ao menos a meu ver, é a chamada "falácia da transposição da condicional".

Quando um cientista decide usar estatísticas para tentar provar alguma coisa, o esforço geralmente toma a seguinte forma: primeiro, o pesquisador imagina como será o mundo, se a coisa que ele está tentando provar for falsa.

Por exemplo, digamos que ele suspeita que assistir ao desenho do Pica-Pau deixa as crianças violentas; se essa ideia estiver errada, então fãs do Pica-Pau não serão mais violentos que as crianças em geral. Essa é chamada hipótese nula. E a inferência é a de que, se a hipótese nula estiver correta, então as estatísticas não devem mostrar um nível de violência significativamente elevado entre fãs do pássaro topetudo vermelho, na comparação com outros grupos infantis.

Presumamos que a amostra da pesquisa tenha sido montada com todo o cuidado, para neutralizar os efeitos de fatores que poderiam confundir o resultado -- como sexo, classe social, faixa etária, desempenho escolar, situação familiar, etc, etc. -- e que, ao fim e ao cabo, o estudo comprove que o comportamento violento e a afinidade pelo Pica-Pau estão correlacionados, com uma probabilidade de a correlação se dever ao acaso inferior a 5%.

Normalmente, então, diríamos que o resultado permite descartar a hipótese nula e afirmar que, sim, o Pica-Pau estimula a violência entre as crianças. Mas essa é, de fato, uma conclusão forte demais. O que deveríamos realmente dizer é que os dados são incompatíveis com a hipótese nula. Em princípio, nada impede que a hipótese esteja certa e os dados, errados. Esse é um dos fatores que torna a questão da reprodutibilidade tão fundamental na ciência.

Em termos de probabilidade condicional, o resultado apenas mostra que a chance de os dados refletirem a realidade, dada a hipótese nula, é menor que 5%. Isso é bem diferente de se afirmar que a chance de a hipótese nula estar certa, frente aos dados, é menor que 5%.

É possível ilustrar a diferença com um exemplo: qual a probabilidade de um homem estar morto, dado que foi devorado por piranhas mutantes voadoras? Bem, suponho que 100%! Mas, agora: qual a probabilidade de um homem ter sido devorado por piranhas mutantes voadoras, dado que está morto? Bem próxima de zero, já que esse tipo de animal não existe!

A suposição de que a probabilidade de A, dado B, deve ser sempre igual ou muito próxima à probabilidade de B, dado A, é a tal da  "falácia da transposição da condicional" que mencionei acima.

Crucialmente, estudos que buscam demonstrar efeitos como precognição, mediunidade e homeopatia erguem-se contra hipóteses nulas de altíssima probabilidade: a de que os efeitos sucedem as causas; a de que a personalidade se extingue, ou ao menos torna-se incomunicável, após a morte; e a de que uma substância química precisa estar presente, para ter efeito sobre o organismo.

A massa -- e qualidade -- da evidência que seria necessária para pôr em questão a razoabilidade de qualquer uma dessas hipóteses é de tirar o fôlego. O que não significa que a tarefa seja, por definição, impossível. Mas o tamanho do desafio é rotineiramente ignorado nas bancas de defesa de tese, nas revistas de nicho e nas distribuições de bolsas de pós-graduação.

Comentários

  1. "passando, portanto, por fora do sistema de revisão pelos pares"

    Não chega a ser por fora. Pós-graduação sensu stricto passam por bancas examinadoras.

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Mas as bancas, em geral, não têm o mesmo espírito crítico de uma equipe de "referees" -- além de não haver anonimidade, muitas vezes são compostas por amigos do orientador...

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