Se Deus existe, então tudo é permitido
A frase-título desta postagem é, se não me engano, um dos slogans da campanha da ATEA. Decidi usá-la para encabeçar minha postagem a respeito do atentado na Noruega porque a tragédia nórdica é uma ilustração bem clara do significado mais profundo do slogan.
(Aliás, alguém poderia em explicar por que os maníacos da Al-Qaeda sempre são chamados de "terroristas islâmicos", mas o cavaleiro templário de Oslo é um "extremista de direita" e não um "terrorista cristão"? Seria mais uma questão da multiplicidade dos pesos e medidas na mídia brasileira? Este editorial do Estadão chega ao cúmulo da delicadeza, calçando luvas de pelica para dizer apenas que o assassino "se definia como cristão conservador". Tá, mas por que, então, não calçar as mesmas luvas e afirmar, por exemplo, que Osama bin Laden "se definia como muçulmano"?)
A questão envolvendo Deus e o que é permitido ou proibido faz parte de um campo de estudos conhecido como o das fundações (ou fundamentos) da ética. Basicamente: qual a autoridade por trás das noções de certo e errado? Uma resposta clássica é a de que tudo vem do costume.
O historiador grego Heródoto parecia concordar com isso. Ele narra um episódio que teria ocorrido na corte real persa, no qual duas delegações estrangeiras ficam horrorizadas ao saber dos costumes funerários uma da outra: uma delas cremava os mortos, e achava bárbaro devorá-los; a outra os devorava, e achava uma falta de respeito reduzir a carne dos mortos a cinzas.
A ideia de que costume é tudo que há tem apelo para um certo tipo de sensibilidade, mas soa insustentável para muita gente (se não por outro motivo, ela permite justificar escravidão, mutilação genital, genocídio e outras atrocidades, bastando para isso invocar a explicação de que "é o costume deles"); a intuição de que deve haver algum padrão mínimo universal -- que talvez até comporte uma superestrutura baseada em cultura e costume -- é muito forte.
Mas, de onde viria esse padrão? "Deus" é uma resposta fácil -- e errada. Sabemos, de fato, que é errada há milênios, muito antes que a Al-Qaeda ou os Novos Templários aparecessem para oferecer prova concreta.
A demonstração aparece num diálogo de Platão, o Eutifro. Nele, Sócrates encontra um amigo que está prestes a denunciar o pai por assassinato, e se envolve num debate sobre a natureza da "piedade" -- mas podemos trocar a palavra por "bem", sem prejuízo para o valor do argumento.
Eutifro define que "piedade" é aquilo que os deuses amam, e impiedade é aquilo que os deuses odeiam -- paralelamente, poderíamos dizer que quem vê em Deus a fundação da ética afirma que certo é o que Deus ordena, e errado, o que Deus proíbe; ou, são boas as ações que Deus aprova e más, as que Ele reprova.
Sócrates, como sói acontecer nos diálogos platônicos, usa a definição dada pelo próprio Eutifro para aplicar-lhe um jiu-jitsu filosófico. O trecho crucial é este:
Sócrates: E o que dizes da piedade, Eutifro: a piedade não é, de acordo com a tua definição, amada por todos os deuses?
Eutifro: Sim.
Sócrates: Porque ela é piedosa e sagrada, ou por alguma outra razão?
Eutifro: Não, essa é a razão.
Sócrates: Então ela é amada porque é sagrada, e não sagrada porque é amada?
Eutifro: Sim.
Em linhas gerais: se o bem e o mal não são arbitrários, se são algo além de simples decretos de um tirano cósmico, então é preciso que haja um padrão de certo e errado que não depende da vontade divina. Porque se o padrão for, de fato, uma criação arbitrária da vontade divina, então matar, estuprar e explodir prédios podem ser atos morais -- bastando, para isso, que Deus queira.
Este é, claro, o raciocínio que, aos olhos de seus praticantes, sejam eles islâmicos ou cristãos, legitima terrorismo religioso; e também o que motiva o slogan no título da postagem: se a vontade divina é a fonte suprema da ética, então a ética pode permitir (ou mesmo exigir) qualquer coisa que dê na veneta de YHWH -- e um leitor casual dos livros de Josué e Samuel, na Bíblia, sabe como é fértil a imaginação para atrocidades dessa augusta personagem.
Mas, então, o que nos resta? Se o costume é insuficiente e o apelo à divindade, arbitrário, como achar o padrão? Afinal, existe um padrão?
Eu acredito que ele pode ser construído, racionalmente, a partir do reconhecimento da nossa humanidade comum -- do fato de que todos sonhamos, desejamos, amamos e, quando atacados, sangramos e morremos do mesmo jeito.
(Aliás, alguém poderia em explicar por que os maníacos da Al-Qaeda sempre são chamados de "terroristas islâmicos", mas o cavaleiro templário de Oslo é um "extremista de direita" e não um "terrorista cristão"? Seria mais uma questão da multiplicidade dos pesos e medidas na mídia brasileira? Este editorial do Estadão chega ao cúmulo da delicadeza, calçando luvas de pelica para dizer apenas que o assassino "se definia como cristão conservador". Tá, mas por que, então, não calçar as mesmas luvas e afirmar, por exemplo, que Osama bin Laden "se definia como muçulmano"?)
A questão envolvendo Deus e o que é permitido ou proibido faz parte de um campo de estudos conhecido como o das fundações (ou fundamentos) da ética. Basicamente: qual a autoridade por trás das noções de certo e errado? Uma resposta clássica é a de que tudo vem do costume.
O historiador grego Heródoto parecia concordar com isso. Ele narra um episódio que teria ocorrido na corte real persa, no qual duas delegações estrangeiras ficam horrorizadas ao saber dos costumes funerários uma da outra: uma delas cremava os mortos, e achava bárbaro devorá-los; a outra os devorava, e achava uma falta de respeito reduzir a carne dos mortos a cinzas.
A ideia de que costume é tudo que há tem apelo para um certo tipo de sensibilidade, mas soa insustentável para muita gente (se não por outro motivo, ela permite justificar escravidão, mutilação genital, genocídio e outras atrocidades, bastando para isso invocar a explicação de que "é o costume deles"); a intuição de que deve haver algum padrão mínimo universal -- que talvez até comporte uma superestrutura baseada em cultura e costume -- é muito forte.
Mas, de onde viria esse padrão? "Deus" é uma resposta fácil -- e errada. Sabemos, de fato, que é errada há milênios, muito antes que a Al-Qaeda ou os Novos Templários aparecessem para oferecer prova concreta.
A demonstração aparece num diálogo de Platão, o Eutifro. Nele, Sócrates encontra um amigo que está prestes a denunciar o pai por assassinato, e se envolve num debate sobre a natureza da "piedade" -- mas podemos trocar a palavra por "bem", sem prejuízo para o valor do argumento.
Eutifro define que "piedade" é aquilo que os deuses amam, e impiedade é aquilo que os deuses odeiam -- paralelamente, poderíamos dizer que quem vê em Deus a fundação da ética afirma que certo é o que Deus ordena, e errado, o que Deus proíbe; ou, são boas as ações que Deus aprova e más, as que Ele reprova.
Sócrates, como sói acontecer nos diálogos platônicos, usa a definição dada pelo próprio Eutifro para aplicar-lhe um jiu-jitsu filosófico. O trecho crucial é este:
Sócrates: E o que dizes da piedade, Eutifro: a piedade não é, de acordo com a tua definição, amada por todos os deuses?
Eutifro: Sim.
Sócrates: Porque ela é piedosa e sagrada, ou por alguma outra razão?
Eutifro: Não, essa é a razão.
Sócrates: Então ela é amada porque é sagrada, e não sagrada porque é amada?
Eutifro: Sim.
Em linhas gerais: se o bem e o mal não são arbitrários, se são algo além de simples decretos de um tirano cósmico, então é preciso que haja um padrão de certo e errado que não depende da vontade divina. Porque se o padrão for, de fato, uma criação arbitrária da vontade divina, então matar, estuprar e explodir prédios podem ser atos morais -- bastando, para isso, que Deus queira.
Este é, claro, o raciocínio que, aos olhos de seus praticantes, sejam eles islâmicos ou cristãos, legitima terrorismo religioso; e também o que motiva o slogan no título da postagem: se a vontade divina é a fonte suprema da ética, então a ética pode permitir (ou mesmo exigir) qualquer coisa que dê na veneta de YHWH -- e um leitor casual dos livros de Josué e Samuel, na Bíblia, sabe como é fértil a imaginação para atrocidades dessa augusta personagem.
Mas, então, o que nos resta? Se o costume é insuficiente e o apelo à divindade, arbitrário, como achar o padrão? Afinal, existe um padrão?
Eu acredito que ele pode ser construído, racionalmente, a partir do reconhecimento da nossa humanidade comum -- do fato de que todos sonhamos, desejamos, amamos e, quando atacados, sangramos e morremos do mesmo jeito.
Sim, *pode* ser construído racionalmente. *Mas*:
ResponderExcluir1) Isso depende de um acordo prévio de que as partes aceitam a moralidade baseada em decisões racionais (o que implica que a base é um costume - mas um costume que passa a ser partilhado);
2) Uma base racional *não* garante uma ética que nós aqui consideraríamos aceitável: vide, a "modesta proposta" de Swift ou o infanticídio singeriano.
[]s,
Roberto Takata
Eu gosto de analisar essa construção pelo fato de sermos seres sociais. Existe vida em sociedade e são necessárias regras para tornar essa existência mais aprasível. Óbvio, que existem vários tipo de sociedades, contudo meu foco seria a tentativa de sociedades onde o plural tivesse mais importância.
ResponderExcluirCarlos, excelente texto, como sempre. Escrevi algo parecido para o Bule um tempo atrás, chamado, Religiões são Intrinsecamente más?
ResponderExcluirhttp://bulevoador.haaan.com/2010/11/18851/
Takata, sempre com um "mas" nos detalhes.:-)
1) Sim, depende, mas não acho que o texto discorde disso. É perfeitamente possível um acordo "racional" determinar regras terríveis. Mas o fato de que será preciso defender e sustentar cada posição, regra e direção, de forma racional, torna mais complicado e mais difícil do que simplesmente dizer "deus quer assim".
2) Swift estava ironizando e sendo sarcástico, sabe disso, não era uma proposta racional real.:)
Essa discussão lembra a proposta das almas ainda a encarnar, e um acordo prévio feito sobre as regras do sistema em que nasceriam. Sem saber onde e como nasceriam, quais posições sociais, qual gênero, se saudável ou doente, se preto ou branco, etc, as regras seriam mais "justa".
Isso porque ninguém aprovaria uma regra que eventualmente onerasse demasiado algum padrão, sabendo que poderia nascer nesse padrão.
Homero