Além da Vida: mediunidade ou leitura a frio?

Aproveitando o feriado paulistano, hoje vou falar um pouco de cinema. No domingo, fui assistir a Além da Vida (Hereafter), de Clint Eastwood, com Matt Damon. Artisticamente é um ótimo filme, com uma fantástica direção de atores e cenas de cortar o coração.

Psicologicamente, é uma exploração delicada dos sentimentos das pessoas que perdem entes queridos.

Já em termos filosóficos -- e científicos -- o filme é um tanto quanto dúbio: ficamos sem saber até que ponto estamos vendo as convicções do diretor (e/ou do roteirista) refletidas na tela, ou até que ponto somos apenas observadores neutros de uma série de eventos na vida dos personagens, apresentados da forma como os personagens os interpretam.

O personagem de Matt Damon é um homem seriamente convencido de que tem o poder de falar com os mortos, e uma cientista consultada pela jornalista Marie LeLay (interpretada por Cécile de France) diz que a constância das imagens das experiências de quase-morte (luz intensa, etc.) sugere que há realmente "algo lá", já que transcende barreiras culturais.

(Esse discurso da pesquisadora, aliás, foi, para mim, o ponto onde o filme mais se aproxima da desonestidade intelectual: existem estudos realizados pela psicóloga britânica Susan Blackmore, por exemplo, sugerindo que a constância das imagens é provocada pela forma como são organizados os neurônios do córtex visual do cérebro humano, algo que obviamente não varia entre culturas. Mais detalhes no livro Consciousness: An Introduction.)

Minha mulher saiu do cinema convicta de que Eastwood havia produzido um libelo em defesa da mediunidade, mas eu não fiquei com tanta certeza. Há muito pouco do que George Lonegan (o personagem de Damon) vê em suas "leituras" que não pode ser explicado como produto de leitura a frio -- a técnica de deduzir coisas sobre as pessoas a partir da observação e da interação com elas, e de elaborar essas deduções com alguns chutes calculados.

Por exemplo, ao "ler" uma amiga alta, magra e morena, Damon diz que está vendo uma mulher alta, magra e morena, mas mais velha; a mulher reconhece a imagem como sendo a própria mãe. Mas, primeiro, sugerir que uma mulher tem uma parente mais velha parecida com ela não é algo que traga um grande risco de erro (se não a mãe, poderia ser uma irmã mais velha, uma tia, a avó); segundo, o dado fundamental, de que a mulher é a mãe, veio da consulente, e não do médium.

Esta é uma parte fundamental da leitura a frio: deixar o cliente preencher as lacunas. O médium interpretado por Damon pede que os consulentes se limitem a responder a suas perguntas com "sim" ou "não", mas todos violam a regra, dando ao médium mais informação do que de fato recebem dele, além de expressar emoções que o ajudam a refinar seus palpites.

Outra característica do bom leitor a frio é a capacidade de produzir palpites genéricos que soam muito específicos para o consulente. Por exemplo, quando o personagem de Damon diz à amiga que o pai dela está "pedindo perdão pelo que fez quando ela era pequena", a mulher tem um colapso emocional -- o que sugere que ela era vítima de abuso sexual.

Mas o médium não falou nada sobre abuso sexual: ele apenas mencionou algo ocorrido na infância, de que o pai se sentia culpado. Poderia ter sido a recusa em comprar um brinquedo, um acidente andando de bicicleta, uma bronca muito dura depois de uma nota baixa na escola...

O curioso é que George Lonegan acredita sinceramente que está em comunicação com os mortos. Isso também não é implausível: muitos leitores a frio são na verdade pessoas de grande empatia natural, que executam seus truques de forma inconsciente, certos de que estão captando a informação por algum canal sobrenatural (é interessante notar que se Lonegan se apresentasse como um telepata leitor de mentes, seu poder seria impossível de distinguir da mediunidade: toda informação sobre os mortos que ele dá aos clientes era composta por coisas de que os consulentes já sabiam, e em muitos casos continha coisas que eles queriam ouvir, como o viúvo perdoado pela mulher morta e instado a se casar de novo.)

Essa leitura alternativa tornou o filme bem mais interessante, ao menos do meu ponto de vista. E o fato de as leituras de Lonegan terem sido estruturas dessa forma ambígua é uma mostra fantástica do talento do autor do roteiro, Peter Morgan.

Comentários

  1. Seria interessante saber como Richard Matheson, o autor do livro que deu origem ao filme, tratou esta questão. Será que alguém aí leu o livro?

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