Moléculas da vida são selecionadas no espaço?

Uma das coisas mais estimulantes da ciência é a forma como novas informações podem alterar a maneira pela qual antigos dados são interpretados. Veja, por exemplo, a relação entre a quiralidade dos aminoácidos e a ideia de que os ingredientes da vida podem ter chegado à Terra vindos do espaço.

Ainda comigo? Bom ver que os leitores do blog não temem polissílabos. Por partes: aminoácidos são moléculas que, ligadas em cadeia, formam proteínas. Proteínas, por sua vez, são as principais moléculas que formam e que trabalham no seu corpo, e que formam e trabalham nos corpos de todos os demais seres vivos.

(Por falar nisso, quando um comercial de cosmético ou suplemento alimentar diz que o produto anunciado contém "aminoácidos essenciais", ele não está oferecendo nada que você não possa obter de um modesto bifinho.)

Sobre a quiralidade: a palavra tem a mesma raiz de quiromancia, a empulhação  arte de ler o futuro na palma da mão, o grego chéri, que significa, adivinhe só, "mão". "Quiralidade" é a propriedade, igual à das mãos, de existir em duas formas, uma direita e uma esquerda.

(Em termos mais gerais, objetos que são idênticos à reflexão que apresentam num espalho -- por exemplo, a letra "T" -- não têm quiralidade. Objetos que aparecem invertidos no espelho -- como a letra "L" -- têm.)

Muitos aminoácidos têm quiralidade, e essa característica representa um pequeno paradoxo: embora, quando produzidos em laboratório, eles surjam na versão direita ou esquerda com igual probabilidade, nas proteínas dos seres vivos só existem predominam aminoácidos esquerdos (correção humildemente adotada após conferir o blog RNAm, aqui). Pior: qualquer tentativa de misturar aminoácidos diretos numa proteína atrapalha profundamente a função biológica da molécula.

Durante muito tempo, esse fato foi usado como argumento a favor da ideia de que a vida, tal como existe na Terra, era exclusiva da Terra: se aminoácidos direitos e esquerdos são igualmente prováveis, a opção terrestre pelos esquerdos deveria ter sido fruto de um acidente nos primórdios da evolução, um acidente particular do ambiente terráqueo.

Alienígenas poderiam ser feitos de aminoácidos direitos (o que garantiria que não seriam capazes de se nutrir consumindo proteína humana, um fato tranquilizador), ou de alguma biologia exótica racêmica -- isto é, que conseguiu misturar com sucesso as duas modalidades.

Há alguns anos, no entanto, estudos de meteoritos começaram a revelar uma preponderância de aminoácidos esquerdos vindos do espaço. Eu já entrevistei a autora de uma dessas descobertas, em 2008.

Com isso, o argumento de que a quiralidade torna improvável o surgimento dos blocos básicos da vida no espaço vira de ponta cabeça, já que os fatos disponíveis passaram a mostrar que, primeiro, os aminoácidos canhotos são preponderantes em dois tipos de situação: dentro dos seres vivos terrestres e nas rochas espaciais; e segundo, que na Terra, fora dos seres vivos, as formas direita e esquerda são igualmente prováveis.

Combinados, esses fatos sugerem que a seleção pela variedade esquerda aconteceu no espaço, e que os aminoácidos que entraram na evolução da vida terrestre já chegaram aqui pré-selecionados. Isso ainda é apenas uma sugestão, veja bem; mas muito interessante.

Nesta semana, a revista Meteoritics and Planetary Science reforça a nova interpretação, trazendo um artigo de pesquisadores que afirmam ter detectado preponderância  da versão canhota de um aminoácido, isovalina, numa grande variedade de meteoritos ricos em carbono. O principal autor do estudo, Daniel Glavin, da Nasa, diz que a ação da água sobre os meteoritos parece ser um dos fatores que causa o excesso de canhotos, mas que esse excesso já devia estar presente na rocha antes da água acentuá-lo.

Glavin sugere que a radiação que banhava o nosso sistema solar em seus primórdios pode ter algo a ver com o favoritismo dos aminoácidos esquerdos. Isso não exclui, no entanto, a possibilidade de haver alienígenas incapazes de apreciar carne humana: o pesquisador especula que outros sistemas solares podem ter se formado em ambientes de radiação diversos, que acabariam favorecendo as moléculas destras.

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