Big Pharma e os testes clínicos
A melhor forma de uma proposta de tratamento de saúde ganhar alguma respeitabilidade científica é por meio de um teste clínico randomizado controlado. O nome pode parecer complexo, mas o procedimento é fácil de descrever:
"Controlado" significa que o tratamento em estudo precisa ser comparado a alguma outra coisa -- a outro tratamento, por exemplo, ou a simplesmente não fazer nada (já que muitas doenças acabam desaparecendo por conta própria).
Já "randomizado" implica que as pessoas que tomam parte no teste são distribuídas ao acaso entre o grupo que receberá o tratamento e o grupo de controle. Isso é feito para evitar que a comparação final dos resultados dos dois grupos seja injusta -- por exemplo, com apenas doentes terminais no grupo de teste e apenas jovens nos estágios iniciais da enfermidade no grupo de controle.
Esse procedimento é ditado por nada além de simples bom-senso e, como tudo que se baseia em bom-senso, foi descoberto, aplicado, esquecido e redescoberto diversas vezes ao longo da história.
A descoberta de que frutas cítricas curam escorbuto -- uma doença que dizimava as tripulações navais -- , feita em 1747, ocorreu por meio de um teste do tipo: o médico de um navio selecionou 12 marinheiros que estavam mais ou menos no mesmo estágio da doença, transferiu-os para uma mesma cabine, submeteu-os a uma mesma dieta -- para controlar causas ambientais -- dividiu-os em seis duplas e deu a cada dupla um tratamento diferente. Os que receberam laranjas e limões sararam.
Atualmente, pelo menos 80% de todos os testes clínicos do tipo feitos no mundo são patrocinados por grandes indústrias farmacêuticas. Esse dado, somado ao fato de que a esmagadora maioria das terapias ditas "holísticas" ou "alternativas" fracassa fragorosamente quando submetida ao protocolo, leva algumas pessoas a afirmar que todo o conceito de "teste clínico" e de "respeitabilidade científica" é arbitrário, uma empulhação criada para nos empurrar remédios e procedimentos caros.
(Curiosamente, não parece ocorrer a essas pessoas que os conceitos de "alternativo" e "holístico" talvez se encaixem de forma muito melhor nessa caricatura desabonadora.)
A acusação, no entanto, não tem fundamento lógico: dizer que a "Big Pharma" está por trás do poder de convencimento dos testes clínicos faz tanto sentido quanto dizer que as empreiteiras estão por trás das leis da física que mantêm os prédios bem construídos em pé.
Isso não significa, é claro, que o fato de a grande indústria financiar a maior parte dos testes não tem efeitos deletérios. Existe um livrinho inglês que todas as pessoas interessadas em ciência e política de saúde deveriam ler, chamado Testing Treatments, que apresenta várias distorções criadas por essa concentração de financiamento. Abaixo, um resumo:
Resultados negativos suprimidos: quando um candidato a tratamento fracassa, os resultados acabam não sendo publicados;
Relatórios que douram a pílula: artigos científicos escritos por pesquisadores financiados pela indústria tendem a ver o copo "meio cheio", destacando os pontos positivos dos resultados e dando menos destaque aos riscos e pontos negativos;
Distorção de prioridades: testes com novas drogas acabam recebendo mais verba do que outros tipos de tratamento, como cirurgias;
Pesquisas desnecessárias: o mundo realmente precisa de mais um antiinflamatório, ou de uma nova droga para controlar a pressão arterial? No entanto, à medida que velhas drogas entram no domínio público, as empresas correm para encontrar novas moléculas com exatamente o mesmo efeito -- ou, no máximo, com um ganho modesto de poucos pontos percentuais de eficácia -- mas que possam ser patenteadas, o que leva ao item final da lista:
Investimentos colossais em propaganda e marketing: a indústria farmacêutica costuma dizer que precisa do dinheiro das patentes de remédios para poder investir em pesquisa. Isso é menos verdade do que parece: a maior parte do investimento dessas empresas é feita em propaganda. Com uma infinidade de moléculas que têm todas exatamente o mesmo efeito, como você convence o médico a receitar o produto do seu laboratório, e não o do concorrente ou o genérico equivalente? Pense um pouco e adivinhe.
Entre o fim do século XIX e durante toda a primeira metade do século passado, a indústria farmacêutica se acostumou a um modelo de negócio baseado em "moléculas milagrosas", como os antibióticos e os primeiros remédios para pressão alta. Essas eram substâncias patentetáveis e capazes de operar efeitos dramáticos, transformando pestes e pragas milenares em meras lembranças, e que elevaram a expectativa de vida humana a níveis sem precedentes na história.
O problema é que, a partir da segunda metade do século XX, começou a parecer que todas as "moléculas milagrosas" já tinham sido descobertas. As doenças que restaram -- como câncer e Alzheimer, por exemplo -- resistem bravamente à abordagem de cura-por-pílula que funcionara tão bem contra a tuberculose, a peste negra ou a hanseníase. Mas o velho paradigma não mudou.
Não se trata de considerar as grandes companhias como vilãs (embora elas se comportem assim em algumas oportunidades), mas de reconhecer que elas têm como objetivo principal gerar dividendos para seus acionistas, e não cuidar da saúde do mundo.
(O mesmo vale, aliás, para os laboratórios homeopáticos, farmácias de manipulação, produtores de fitoterápicos e quetais.)
Mesmo a pesquisa realizada nas universidades sofre distorções causadas pelos tipos de incentivo a que os cientistas acadêmicos estão expostos. Em Testing Treatments, os autores citam a relutância em participar de grandes programas de pesquisa envolvendo vários centros de estudo (porque isso dilui a autoria); a relutância em realizar testes clínicos em seres humanos (por conta dos custos, da pressão ética e da burocracia); e o excesso de estudos em animais que nunca chegam a gerar benefícios para a saúde humana.
"Controlado" significa que o tratamento em estudo precisa ser comparado a alguma outra coisa -- a outro tratamento, por exemplo, ou a simplesmente não fazer nada (já que muitas doenças acabam desaparecendo por conta própria).
Já "randomizado" implica que as pessoas que tomam parte no teste são distribuídas ao acaso entre o grupo que receberá o tratamento e o grupo de controle. Isso é feito para evitar que a comparação final dos resultados dos dois grupos seja injusta -- por exemplo, com apenas doentes terminais no grupo de teste e apenas jovens nos estágios iniciais da enfermidade no grupo de controle.
Esse procedimento é ditado por nada além de simples bom-senso e, como tudo que se baseia em bom-senso, foi descoberto, aplicado, esquecido e redescoberto diversas vezes ao longo da história.
A descoberta de que frutas cítricas curam escorbuto -- uma doença que dizimava as tripulações navais -- , feita em 1747, ocorreu por meio de um teste do tipo: o médico de um navio selecionou 12 marinheiros que estavam mais ou menos no mesmo estágio da doença, transferiu-os para uma mesma cabine, submeteu-os a uma mesma dieta -- para controlar causas ambientais -- dividiu-os em seis duplas e deu a cada dupla um tratamento diferente. Os que receberam laranjas e limões sararam.
Atualmente, pelo menos 80% de todos os testes clínicos do tipo feitos no mundo são patrocinados por grandes indústrias farmacêuticas. Esse dado, somado ao fato de que a esmagadora maioria das terapias ditas "holísticas" ou "alternativas" fracassa fragorosamente quando submetida ao protocolo, leva algumas pessoas a afirmar que todo o conceito de "teste clínico" e de "respeitabilidade científica" é arbitrário, uma empulhação criada para nos empurrar remédios e procedimentos caros.
(Curiosamente, não parece ocorrer a essas pessoas que os conceitos de "alternativo" e "holístico" talvez se encaixem de forma muito melhor nessa caricatura desabonadora.)
A acusação, no entanto, não tem fundamento lógico: dizer que a "Big Pharma" está por trás do poder de convencimento dos testes clínicos faz tanto sentido quanto dizer que as empreiteiras estão por trás das leis da física que mantêm os prédios bem construídos em pé.
Isso não significa, é claro, que o fato de a grande indústria financiar a maior parte dos testes não tem efeitos deletérios. Existe um livrinho inglês que todas as pessoas interessadas em ciência e política de saúde deveriam ler, chamado Testing Treatments, que apresenta várias distorções criadas por essa concentração de financiamento. Abaixo, um resumo:
Resultados negativos suprimidos: quando um candidato a tratamento fracassa, os resultados acabam não sendo publicados;
Relatórios que douram a pílula: artigos científicos escritos por pesquisadores financiados pela indústria tendem a ver o copo "meio cheio", destacando os pontos positivos dos resultados e dando menos destaque aos riscos e pontos negativos;
Distorção de prioridades: testes com novas drogas acabam recebendo mais verba do que outros tipos de tratamento, como cirurgias;
Pesquisas desnecessárias: o mundo realmente precisa de mais um antiinflamatório, ou de uma nova droga para controlar a pressão arterial? No entanto, à medida que velhas drogas entram no domínio público, as empresas correm para encontrar novas moléculas com exatamente o mesmo efeito -- ou, no máximo, com um ganho modesto de poucos pontos percentuais de eficácia -- mas que possam ser patenteadas, o que leva ao item final da lista:
Investimentos colossais em propaganda e marketing: a indústria farmacêutica costuma dizer que precisa do dinheiro das patentes de remédios para poder investir em pesquisa. Isso é menos verdade do que parece: a maior parte do investimento dessas empresas é feita em propaganda. Com uma infinidade de moléculas que têm todas exatamente o mesmo efeito, como você convence o médico a receitar o produto do seu laboratório, e não o do concorrente ou o genérico equivalente? Pense um pouco e adivinhe.
Entre o fim do século XIX e durante toda a primeira metade do século passado, a indústria farmacêutica se acostumou a um modelo de negócio baseado em "moléculas milagrosas", como os antibióticos e os primeiros remédios para pressão alta. Essas eram substâncias patentetáveis e capazes de operar efeitos dramáticos, transformando pestes e pragas milenares em meras lembranças, e que elevaram a expectativa de vida humana a níveis sem precedentes na história.
O problema é que, a partir da segunda metade do século XX, começou a parecer que todas as "moléculas milagrosas" já tinham sido descobertas. As doenças que restaram -- como câncer e Alzheimer, por exemplo -- resistem bravamente à abordagem de cura-por-pílula que funcionara tão bem contra a tuberculose, a peste negra ou a hanseníase. Mas o velho paradigma não mudou.
Não se trata de considerar as grandes companhias como vilãs (embora elas se comportem assim em algumas oportunidades), mas de reconhecer que elas têm como objetivo principal gerar dividendos para seus acionistas, e não cuidar da saúde do mundo.
(O mesmo vale, aliás, para os laboratórios homeopáticos, farmácias de manipulação, produtores de fitoterápicos e quetais.)
Mesmo a pesquisa realizada nas universidades sofre distorções causadas pelos tipos de incentivo a que os cientistas acadêmicos estão expostos. Em Testing Treatments, os autores citam a relutância em participar de grandes programas de pesquisa envolvendo vários centros de estudo (porque isso dilui a autoria); a relutância em realizar testes clínicos em seres humanos (por conta dos custos, da pressão ética e da burocracia); e o excesso de estudos em animais que nunca chegam a gerar benefícios para a saúde humana.
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