Kafka e eu: a saga do seguro desemprego
Hoje, cerca de 90 dias após ter sido demitido, recebi a primeira parcela do meu seguro-desemprego. A trajetória entre o bilhete azul (que, estranhamente, não era azul, mas uma folha de sulfite comum) e este momento é tão engraçada -- numa perspectiva, digamos, filosófica -- que tomo a liberdade de oferecer uma pequena crônica a respeito.
Enfim: meu último dia "oficial" como assalariado foi 7 de dezembro. O fato de o seguro-desemprego estar saindo em 21 de fevereiro traz consigo a pergunta, e se eu realmente estivesse precisando do dinheiro? Com escola dos filhos para pagar e dívidas no banco? Passando fome?
A saga tem início no RH (ou "DP", como preferem as telefonistas não-escoladas em novilíngua corporativa). Para solicitar o seguro, é preciso um documento emitido pela empresa, o termo de rescisão -- um papel que diz que você não trabalha mais lá. Curiosamente, o bilhete azul/sulfite comum não serve. Oh, não senhor. É preciso um papel oficial. Este só se recebe (ou eu só recebi) na homologação, que por sua vez só foi feita em meados de janeiro.
De posse do papel, vai-se ao Poupa-Tempo (com um monte de outros documentos, porque no Brasil o governo só acredita que o cidadão é quem diz ser sob coação extrema) e faz-se a solicitação. O seguro então é liberado, via Caixa Econômica Federal, 30 dias depois.
(Ah, sim: para resgatar o FGTS, é preciso ir pessoalmente a uma agência da CEF, de posse do mesmo papel de demissão. Então, não seria mais simples resgatar o FGTS e pedir o seguro-desemprego numa tacada só? Claro que seria. Mas o pessoal da CEF não deixa: é preciso perder tempo indo, com exatamente a mesma documentação, ao Poupa-Tempo.)
Só isso? Claro que não. É preciso ligar num 0800 da CEF e solicitar um "cartão do cidadão" (deveria ser "cartão do palhaço pagador de impostos", mas novilíngua não é privilégio corporativo). Que leva uns 15 dias para chegar. E é preciso ir pessoalmente a uma agência da CEF para cadastrar a senha do cartão.
Para cadastrar a senha é necessário, além de encarar a fila, ter em mãos um documento com foto. Carteira de motorista vencida não serve -- o que é engraçado, porque o fato de o cidadão não estar mais apto a conduzir veículo automotor não interfere em nada com sua aparência física e/ou com o número de seu RG e CPF -- então, tem de ser o RG.
(Aquele que o cidadão tirou para prestar vestibular, com uma foto que já tem lá uns 25 anos, anos e que é, objetivamente, um documento de identificação muito mais precário que a carteira de motorista vencida, onde, ora bolas, aparece uma foto de apenas três anos atrás.)
E então o cidadão apresenta o RG, apenas para ouvir da simpática atendente que a plastificação do documento é irregular e que ele, portanto, não será aceito. A senha não pode ser cadastrada. O senhor não teria a carteira de trabalho aí?
Não. Não teria. Conhecedor, no entanto, das inconsistências da burocracia, o cidadão cruza a cidade a pé -- desempregado tem tempo de sobra, afinal -- em busca de outra agência da CEF. Onde, apresentando o mesmíssimo RG com a mesmíssima plastificação, consegue, sem maiores atropelos (exceto a onipresente fila) cadastrar uma senha.
Agora, o cidadão tem conta em bancos privados. A CEF é um banco. Bancos realizam transferências interbancárias. O valor do seguro-desemprego poderia, talvez, ser transferido diretamente para uma das contas do supracitado cidadão? Não. Seria, então, possível usar o "cartão do cidadão" para sacar o valor do seguro-desemprego em caixas automáticos ligados à rede da CEF? Também não.
Para receber, é preciso ir a uma lotérica com o cartão e RG e sacar o valor integralmente, em dinheiro.
A exigência obsessiva do RG é interessante. Para sacar o dinheiro é preciso levar o cartão, digitar uma senha e mostrar o documento com foto. Medidas para a segurança do cidadão, dirá você? Claro, forçando-o a entrar num estabelecimento, uma lotérica, sem portas automáticas ou detectores de metal, e a sair de lá para a rua com um pacote de dinheiro vivo que pode representar a soma total de seus rendimentos mensais. Seguro pra caramba.
Isso, é óbvio, supondo que a lotérica tenha dinheiro suficiente em caixa para pagar o seguro. Porque o cidadão pode ficar na fila por um tempo considerável apenas para chegar na boca do caixa e ser avisado de que não há dinheiro para fazer o pagamento naquele momento. Ou não há troco. Ou ambos.
É apenas na segunda (ou terceira) lotérica que o seguro finalmente é pago.
O Estado brasileiro -- seria apenas o brasileiro? -- tem o hábito arraigado de esquivar-se do trabalho, por meio da criação de dificuldades para o cidadão.
O exemplo mais claro disso para mim havia sido, até hoje, a tentativa do governador Geraldo Alckmin, em seu primeiro mandato, de convencer o governo federal a proibir os telefones celulares pré-pagos, a fim de evitar rebeliões em presídios: dada a incompetência das autoridades de segurança, reduzam-se os direitos do o cidadão honesto.
A saga do seguro-desemprego passa a ser uma segunda instância em minha memória pessoal. Das salvaguardas fajutas ao arbítrio burocrático, várias das dificuldades criadas artificialmente no processo poderiam ser reduzidas com um pouco mais de esforço e inteligência por parte dos agentes públicos. Mas, aí, é melhor esperar sentado -- quando não se estiver em pé numa fila.
Enfim: meu último dia "oficial" como assalariado foi 7 de dezembro. O fato de o seguro-desemprego estar saindo em 21 de fevereiro traz consigo a pergunta, e se eu realmente estivesse precisando do dinheiro? Com escola dos filhos para pagar e dívidas no banco? Passando fome?
A saga tem início no RH (ou "DP", como preferem as telefonistas não-escoladas em novilíngua corporativa). Para solicitar o seguro, é preciso um documento emitido pela empresa, o termo de rescisão -- um papel que diz que você não trabalha mais lá. Curiosamente, o bilhete azul/sulfite comum não serve. Oh, não senhor. É preciso um papel oficial. Este só se recebe (ou eu só recebi) na homologação, que por sua vez só foi feita em meados de janeiro.
De posse do papel, vai-se ao Poupa-Tempo (com um monte de outros documentos, porque no Brasil o governo só acredita que o cidadão é quem diz ser sob coação extrema) e faz-se a solicitação. O seguro então é liberado, via Caixa Econômica Federal, 30 dias depois.
(Ah, sim: para resgatar o FGTS, é preciso ir pessoalmente a uma agência da CEF, de posse do mesmo papel de demissão. Então, não seria mais simples resgatar o FGTS e pedir o seguro-desemprego numa tacada só? Claro que seria. Mas o pessoal da CEF não deixa: é preciso perder tempo indo, com exatamente a mesma documentação, ao Poupa-Tempo.)
Só isso? Claro que não. É preciso ligar num 0800 da CEF e solicitar um "cartão do cidadão" (deveria ser "cartão do palhaço pagador de impostos", mas novilíngua não é privilégio corporativo). Que leva uns 15 dias para chegar. E é preciso ir pessoalmente a uma agência da CEF para cadastrar a senha do cartão.
Para cadastrar a senha é necessário, além de encarar a fila, ter em mãos um documento com foto. Carteira de motorista vencida não serve -- o que é engraçado, porque o fato de o cidadão não estar mais apto a conduzir veículo automotor não interfere em nada com sua aparência física e/ou com o número de seu RG e CPF -- então, tem de ser o RG.
(Aquele que o cidadão tirou para prestar vestibular, com uma foto que já tem lá uns 25 anos, anos e que é, objetivamente, um documento de identificação muito mais precário que a carteira de motorista vencida, onde, ora bolas, aparece uma foto de apenas três anos atrás.)
E então o cidadão apresenta o RG, apenas para ouvir da simpática atendente que a plastificação do documento é irregular e que ele, portanto, não será aceito. A senha não pode ser cadastrada. O senhor não teria a carteira de trabalho aí?
Não. Não teria. Conhecedor, no entanto, das inconsistências da burocracia, o cidadão cruza a cidade a pé -- desempregado tem tempo de sobra, afinal -- em busca de outra agência da CEF. Onde, apresentando o mesmíssimo RG com a mesmíssima plastificação, consegue, sem maiores atropelos (exceto a onipresente fila) cadastrar uma senha.
Agora, o cidadão tem conta em bancos privados. A CEF é um banco. Bancos realizam transferências interbancárias. O valor do seguro-desemprego poderia, talvez, ser transferido diretamente para uma das contas do supracitado cidadão? Não. Seria, então, possível usar o "cartão do cidadão" para sacar o valor do seguro-desemprego em caixas automáticos ligados à rede da CEF? Também não.
Para receber, é preciso ir a uma lotérica com o cartão e RG e sacar o valor integralmente, em dinheiro.
A exigência obsessiva do RG é interessante. Para sacar o dinheiro é preciso levar o cartão, digitar uma senha e mostrar o documento com foto. Medidas para a segurança do cidadão, dirá você? Claro, forçando-o a entrar num estabelecimento, uma lotérica, sem portas automáticas ou detectores de metal, e a sair de lá para a rua com um pacote de dinheiro vivo que pode representar a soma total de seus rendimentos mensais. Seguro pra caramba.
Isso, é óbvio, supondo que a lotérica tenha dinheiro suficiente em caixa para pagar o seguro. Porque o cidadão pode ficar na fila por um tempo considerável apenas para chegar na boca do caixa e ser avisado de que não há dinheiro para fazer o pagamento naquele momento. Ou não há troco. Ou ambos.
É apenas na segunda (ou terceira) lotérica que o seguro finalmente é pago.
O Estado brasileiro -- seria apenas o brasileiro? -- tem o hábito arraigado de esquivar-se do trabalho, por meio da criação de dificuldades para o cidadão.
O exemplo mais claro disso para mim havia sido, até hoje, a tentativa do governador Geraldo Alckmin, em seu primeiro mandato, de convencer o governo federal a proibir os telefones celulares pré-pagos, a fim de evitar rebeliões em presídios: dada a incompetência das autoridades de segurança, reduzam-se os direitos do o cidadão honesto.
A saga do seguro-desemprego passa a ser uma segunda instância em minha memória pessoal. Das salvaguardas fajutas ao arbítrio burocrático, várias das dificuldades criadas artificialmente no processo poderiam ser reduzidas com um pouco mais de esforço e inteligência por parte dos agentes públicos. Mas, aí, é melhor esperar sentado -- quando não se estiver em pé numa fila.
Olá, Carlos. Por essas e outras não pretendo voltar ao Brasil. Já estive desempregado aqui no Japão. A primeira parcela do meu seguro- desemprego entrou em duas semanas. Se eu tivesse de esperar dois meses provavelmente viraria um "homeless". Lamentável isso. Parece que absolutamente NADA funciona rápido aí, a não ser, claro, o aumento salarial dos congressistas.
ResponderExcluiré um relato triste e desanimador, quando passo por situações parecidas sinto que os agentes públicos acreditam me estar prestando um favor custoso.
ResponderExcluirNo Brasil o serviço público não existe para facilitar a vida do cidadão, e sim o contrário...
ResponderExcluir"Venho dum país que aprendeu a temer ou aborrecer tudo quanto diga respeito à burocracia. Lei para nós chega a ser uma palavra terrível. [...] Cresci com esse medo na alma, e com a subterrânea idéia de que o funcionalismo público é uma organização destinada a dificultar as coisas e de que no fim das contas o governo não passa mesmo dum instrumento de opressão."
ResponderExcluirÉrico Veríssimo, A Volta do Gato Preto, 1961
A única coisa que mudou nestes cinquenta anos são as desculpas informatizadas: "o sistema caiu", "o sistema não aceita" e "o sistema está lento".
O mais incrível de nossa sociedade é que há uma legião de pessoas que "procuram" o desemprego como forma de receber estes auxílios do Governo.
ResponderExcluirEstas pessoas preferem ter todo este trabalho a trabalhar de verdade.
Por inúmeras vezes vi empresários, principalmente de micro empresas, reclamando deste mal. Depois de alguns meses trabalhando, o funcionário via com interesse a perda do emprego para receber o dito auxilio do Governo!
Que país é este?
Alon - Estou indignado, pois eu passei por situação semelhante. A falta de empatia dessas pessoas, se estes funcionários se colocasse no meu lugar, eles saberiam o que estou sentindo. Este sistema burocratico ignora com fragilidade do momento ser humano.
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