Possessão demoníaca, exorcismo e ignorância

Talvez não exista indicador melhor do nível de ignorância de uma sociedade do que a prevalência da crença em possessão demoníaca. É evidente, por exemplo, que o pobre endemoinhado exorcizado por Jesus no capítulo 9 no Evangelho de Marcos era um epilético. Isso fica bem claro na leitura, com olhos modernos, dos versículos correspondentes, abaixo:

“17. Respondeu um homem dentre a multidão: Mestre, eu te trouxe meu filho, que tem um espírito mudo. 18. Este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma, range os dentes e fica endurecido. Roguei a teus discípulos que o expelissem, mas não o puderam. (...) 25. Vendo Jesus que o povo afluía, intimou o espírito imundo e disse-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai deste menino e não tornes a entrar nele.

Compare a lista de sintomas dada pelo pai do "possesso" à descrição do "grand mal", um tipo de ataque epilético, que consta do site da Mayo Clinic: perda de consciência; os músculos se contraem de repente, fazendo a pessoa cair; os músculos então entram em contrações rítmicas, flexionando-se e relaxandoQuatrocentos anos antes do tempo de Jesus, Hipócrates já havia especulado que a epilepsia era causada por problemas orgânicos no cérebro. 

(Em agosto de 2009, o Superior Tribunal de Justiça manteve condenação da Igreja Universal do Reino de Deus por agressão a um epilético, indevidamente “exorcizado” por representantes da denominação.)

Embora a epilepsia seja a doença mais comumente confundida com possessão, os sintomas mais dramáticos associados à suposta presença do demônio pertencem a uma doença rara, a Síndrome de Gilles de la Tourette, que deve o nome ao médico francês que a descreveu em 1885. 

De acordo com o psiquiatra Barry Beyerstein, os sintomas da síndrome, que muitas vezes é confundida com a esquizofrenia, batem também com várias representações contidas no Malleus Maleficarum, o manual de caça às bruxas da Inquisição, usado entre os séculos XV e XVIII.

Em mais da metade dos casos, segundo Beyerstein (autor de um artigo clássico sobre o tema, Neuropathology and the legacy of spiritual possession) a síndrome produz surtos verbais de blasfêmias, palavrões e termos sexuais. Desejos sexuais “proibidos”, impulsos violentos ou de cometer sacrilégio tomam conta da mente da vítima, junto com uma forte impressão de que a verbalização ajudará a dissipar a pressão psicológica.

Em tempos modernos -- por exemplo, no caso do garoto americano que inspirou o filme O Exorcista -- muitos supostos "casos reais" que cedo ou tarde chegam às telas do cinema provavelmente não passaram de brincadeiras adolescentes que acabaram escapando do controle (como no episódio, comparativamente benigno, das Fadas de Cottingley).

(Você pode querer parar para refletir um pouco sobre o tipo de sociedade em que vivemos, onde alguns pais   preferem acreditar que o filho está possuído pelo demônio a aceitar que ele apenas é mimado, malcriado ou está querendo chamar atenção.)

Em janeiro deste ano, um grupo de freiras romenas condenadas por crucificar uma mulher esquizofrênica para "exorcizá-la" foi solto da prisão, por bom comportamento. O padre que coordenou a atrocidade, Daniel Petru Corogeanu (foto ao lado), deve ser libertado nos próximos meses.

A despeito da longa lista de erros e atrocidades cometidos em nome de "expulsar o demônio", o Vaticano insiste que possessões são fenômenos reais. O catecismo católico afirma que é possível distinguir a ação do demônio de problemas neurológicos ou psiquiátricos normais (algo que nem Jesus parece ter sido capaz de fazer, de acordo com o relato de Marcos).

E, claro, vem aí um novo filme sobre exorcismos, O Ritual, "inspirado em eventos reais". Não tenho nada contra histórias de terror -- quem me conhece sabe que já cometi um bom número delas -- e talvez eu até vá ver a fita. Mas terei plena consciência de que o único "fato real" ali é a vontade de ganhar dinheiro.

Comentários

  1. Texto carregado de preconceito religioso, etnocentrismo ocidental e anacronismo. Juro que foi um esforço terminar de lê-lo e o fiz em nome de uma possível justificativa... foi em vão!

    Antes de alguma acusação, não tenho religião alguma (nem msmo ateísmo). Me parece que não é o caso do autor que é religiosamente cético.

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  2. "etnocentrismo ocidental" é legal, não tinham me acusado disso, ainda... De qualquer forma, grato pelo esforço!

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  3. Carlos, não o conhecia até agora, e adorei seu texto. Pretendo acompanhar seu blog. Parabéns.
    E quanto ao comentário do Bruno, quando ele diz "não tenho religião nenhuma (nem msmo ateísmo)", não custa reforçar que ateísmo não é uma religião, justamente pelo contrário.

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  4. Aliás, depois de ler esse artig o deu umavontade danada de escrever um conto sobre possessão onde toda a história da psicanálise estivesse errada e a esquizofrenia fosse mesmo ataques infernais.

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  5. Legal como qualquer crítica à religião automaticamente vira "preconceito religioso".

    Bruno disse: "Antes de alguma acusação, não tenho religião alguma (nem msmo ateísmo)."

    Duvido. Senão, por que estaria defendendo uma prática irracional como o exorcismo, que causa tanta atrocidade pelo mundo?

    E ateísmo, para sua informação, não é religião.

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  6. Carlos,

    Sou epilético, por causas desconhecidas, e faço tratamento desde os 14 anos. Trabalho a 23 anos e tenho uma vida normal, onde me graduei, fiz pós graduação e mestrado e atuo na área de engenharia de sistemas a anos.

    Certamente isto só foi possível porque nasci no século 20, se fosse a alguns séculos atrás certamente eu teria sido queimado na fogueira da santa inquisição.

    Muito bom seu texto, confesso que tenho interpretação similar a muitos anos.

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  7. Acho que é preciso muito cuidado ao dizer coisas como " Talvez não exista indicador melhor do nível de ignorância de uma sociedade do que a prevalência da crença em possessão demoníaca"

    Esta lidando diretamente com o campo religioso e a ciência por mais avançada que seja, não pode afirmar que existe e também não pode afirmar que não existe.

    O maior problema é considerar o demonio que esta possuindo uma pessoa como um monstro de chifres.
    A questão é : Magia também se faz com a ida ao psiquiatra e ser medicado. O texto tem boa intenção, mas achei que indiretamente da uma agulhada desnecessária a todo um grupo que de forma ou outra crê nesse tipo de coisa.

    abs

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  8. Oi, Anônimo! O critério da "escala" que propus é bem claro: quanto mais tolerante e cientificamente sofisticada uma sociedade, menos se leva esse papo de possessão a sério.

    E discordo que "magia também se faz com a ida ao psiquiatra". Magia é uma coisa, psiquiatria é outra. Metáforas podem ser úteis em alguns contextos, mas convém não confundir as essências.

    De resto, não creio que a agulhada seja desnecessária: se pessoas que se consideram cultas mantêm crenças que estão ligadas, por encadeamento lógico e exemplo histórico, a barbaridades, é preciso chamar-lhes a atenção para o fato.

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  9. Recentemente saiu em DVD um filme chamado O Último Exorcismo, que lida com o assunto de maneira inteligente e interessante, acho que vale a conferida, apesar do final ser imbecil.

    Ótimo texto.

    Abraço!

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  10. Bruno: ", não tenho religião alguma (nem msmo ateísmo)"

    Ateísmo é tão religião quanto "não" colecionar selos é um hobby..:-) Ou careca uma cor de cabelo..:-)

    Falando sério, ótimo texto Carlos e bem argumentado.

    E quando o anônimo fala sobre a ciência não poder "não pode afirmar que existe e também não pode afirmar que não existe", é apenas um jogo de palavras.

    Sabemos que TUDO é possível, mas não com a mesma probabilidade de ser possível. Papai Noel, por exemplo, ou duendes, a ciência, e ninguém na verdade, pode provar que não existe, mas nem por isso a probabilidade destes existirem deve ser considerada mais que desprezível.

    Não existir, e viver como se não existisse (por falta de evidências e efeitos) dá na mesma.

    Um abraço.

    Homero

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  11. Excelente post!!

    Li o seu texto com entusiasmo, isto porque vai totalmente de acordo com a minha opinião!

    A Igreja Católica não aceita críticas, o que não vai de encontro com a Religião católica vira preconceito!

    As pessoas (incluindo eu) quando referem certos pormenores, exemplo da epilepsia (e outras doenças identificadas pela sociedade científica) ser um dos "demónios expulsos" na Idade Média, são vistas pela comunidade católica como ignorantes, mas é precisamente contrário.

    Ignorante é quem lê um livro com 2 milénios e pensa que tudo o que está escrito é actual, são sociedades diferentes.

    Ainda bem que a Ciência se desenvolveu ao ponto de provar erros que perduraram durante centenas de anos!

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