Por que deveria haver nada em lugar de alguma coisa?

Se um dia eu fosse criar um teste de personalidade baseado em perguntas filosóficas de múltipla escolha, o primeiro item provavelmente seria:

Você acha que a questão "por que existe alguma coisa em vez de nada?" é:

(A) Um intrigante problema,  para o qual talvez não haja resposta;
(B) Um sinal da existência de um criador necessário, isto é, Deus;
(C) Fruto de de um raciocínio circular, e que não requer resposta;
(D) Algo que as pesquisas sobre Física teórica resolverão um dia.

Minha resposta particular seria "c" (com uma certa simpatia por "d"), mas imagino que isso me põe num grupo francamente minoritário, então me explico.

A questão, da forma como foi articulada por Leibniz em seu argumento da razão suficiente, me parece circular porque ela pressupõe (sem demonstrar) a premissa de que o "nada" é um estado possível, uma alternativa válida a "alguma coisa". Por exemplo, a questão "por que a chuva cai em vez de subir" pressupõe que ir para cima é uma possibilidade -- algo facilmente demonstrável.

A possibilidade do "nada" absoluto como alternativa viável e plausível a "alguma coisa" é, no entanto, muito mais difícil de estabelecer.

Uma forma de tentar fazer isso é argumentar pela simplicidade: "nada" é simples, "alguma coisa" é complexo, e a experiência mostra que coisas complexas requerem mais explicações que coisas simples. Outra saída seria pelo princípio do menor esforço: se ninguém se mexe, nada acontece. Logo, para haver alguma coisa, é preciso trabalho e direção.

Esses dois argumentos, no entanto, são generalizações indevidas de particularidades muito específicas da experiência humana, a saber, da experiência do trabalho humano.

Não é verdade que, se ninguém faz nada, nada acontece. Muita coisa acontece: o vento sopra, a grama cresce, os planetas seguem em suas órbitas. É verdade que em nossas sociedades praticamente nada do que nos cerca -- móveis, computadores, arroz, feijão -- existiria sem o esforço de outros seres humanos, mas generalizar da Avenida Paulista para o Universo envolve uma dose cavalar de arrogância.

Já a alegação da "simplicidade" do nada é ainda mais problemática. Não apenas o "nada" físico -- o vácuo -- vem se revelando algo extremamente complexo, como o conceito abstrato de "nada" requer uma boa dose de contorcionismo linguístico e mental: se estamos falando sobre nada, então do que estamos falando?

Se você não viu nada, então isso significa que você  viu alguma coisa?  A própria adoção do zero foi uma manobra revolucionária na história da matemática. É muito mais simples discutir "alguma coisa" do que "nada".



Imagino que os parágrafos acima tenham me deixado aberto à acusação que fiz aos defensores da excepcionalidade de "alguma coisa": a de provincianismo e antropocentrismo. Não é porque, poderiam dizer-me, nossas mentes miúdas têm dificuldade em entender o nada que ele não poderia ser, objetivamente, mais simples que alguma coisa. Afinal, o nada é nada. Não tem partes. Não segue regras. Não obedece a leis. Não cresce, não muda, não se transforma. Ele é mais simples do que "alguma coisa" da mesma forma que uma pedra é "mais simples" do que uma árvore.

Mas será? Um critério objetivo muitas vezes usado para medir complexidade é -- estou passando por cima de uma enorme discussão conceitual aqui, desculpem-me -- o número de formas em que uma coisa poderia ser alterada e continuar a ser ela mesma.

Por exemplo, o ar no meu escritório continuará a ser o ar no meu escritório, não importa se a molécula de CO2 que acabo de exalar vai parar no canto superior esquerdo ou no canto inferior direito da sala. Já a mudança de posição de uma só molécula no meu cérebro poderia me transformar em outra pessoa -- num astrólogo, talvez! -- portanto, eu sou mais complexo que a massa de ar que preenche o meu escritório.

(Repare que esse critério também funciona no exemplo anterior, da pedra e da árvore.)

O que nos traz à questão: de quantas maneiras diferentes é possível ser "nada"? Imagino que de apenas uma. Qualquer mudança transformaria o "nada" em alguma coisa. E de quantas formas é possível ser "alguma coisa"?

Melhor não tentar contar.

(A foto acima é de um tardígrado, um animal capaz de sobreviver no vazio do espaço)

Comentários

  1. Hum! Eu também fui pelo C, e gostei da linha de raciocínios que conduziu desde a proposição da pergunta. Fiquei feliz de saber que é autor de ficção. Vou procurar conhecer mais, grato por expor seu pensamento.

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  2. Fui de "C"

    Gostei do tardígrado, podíamos mandar alguns para colonizar Marte.

    Atheos

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  3. É impressão minha ou no final você meio que descreveu as propriedades do "nada" de forma semelhante as propriedades de um buraco negro (como na famosa aposta se os buracos negros seriam "carecas" ou não)?

    Só que na sua definição do "nada", ele seria ainda mais "careca", ou seja, desprovido de propriedades. :)

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  4. Oi, Pedro! Bom, buracos negros, mesmo mantendo-se as condições em que o teorema "sem cabelos" é válido (ele não leva em conta efeitos quânticos, se não me engano) ainda têm massa e podem ter momento angular e carga elétrica. O nada não tem nada disso...

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  5. Acho que Pedro queria chamar atenção para o fato de que simplcidade é uma propriedade de ALGUMA COISA. Aplicando sua própria lógica: o que é simples pode ser composto, mas a somas de "nadas" não gera coisa alguma, muito menos coisa alguma composta -- e se adicionarmos "alguma coisa" ao "nada" não teremos "o nada mais alguma coisa", mas apenas "alguma coisa". No final das contas, o conceito de simplicidade não se aplica ao nada, porque ele torna uma diferença categórica entre o "ser e o nada" uma mera diferença de grau.

    Em todo caso a discussão é bem interessante, assim como o seu blog. Abraços!

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