Um milagre oficialmente reconhecido é mesmo um milagre?
Na primeira postagem deste blog, há uma semana, mencionei que tinha pesquisado a questão da possessão demoníaca por conta de um livro que estou escrevendo. O livro é sobre os estudos científicos realizados acerca de intervenções sobrenaturais no nosso mundo material -- com ênfase especial em eventos tidos como milagrosos.
(A parte sobre demônios e exorcismos fica num apêndice, que decidi redigir para preservar a prática jornalística de dar voz ao "outro lado", por assim dizer.)
A notícia de que o Vaticano reconheceu a cura de uma freira, supostamente portadora do Mal de Parkinson, como sendo um milagre operado por intercessão do falecido papa João Paulo II, chega num momento onde estou até as orelhas em estudos e análises a respeito exatamente desse tipo de fenômeno.
A mídia deu um bom destaque à história do milagre e, como sói acontecer nesses casos, sem basicamente nenhum tipo de análise crítica das falhas lógicas embutidas -- na verdade, falhas essenciais -- no processo católico de criação de beatos e santos.
É instrutivo, portanto, dar uma olhada em alguns detalhes do caso.
Começando pela questão da cura da freira Marie Simon-Pierre. Esta reportagem do Los Angeles Times lembra que, em 2010, autoridades no próprio Vaticano haviam expressado dúvidas quanto ao diagnóstico de Parkinson. É curioso ainda mencionar, numa nota à parte, que esclerose múltipla -- uma doença responsável por quatro milagres certificados do santuário de Lourdes, e que também afeta o sistema nervoso em sua comunicação com os músculos -- apresenta, de acordo com o psiquiatra Terence Hines, vários casos conhecidos de remissão natural.
Hines, em seu livro Pseudoscience and the Paranormal cita um estudo no qual o acompanhamento de pacientes de esclerose múltipla revelou que, 25 anos após o início da doença, 75% deles estavam vivos e dos sobreviventes, 55% não apresentavam nenhuma deficiência significativa.
Mesmo supondo que o diagnóstico da freira foi correto, e que ela não estivesse sofrendo de alguma outra doença mais facilmente curável (ou de uma aflição de origem psicológica), é possível afirmar (a menos que, num caso clássico de raciocínio circular, já se parta dessa premissa) que a cura tenha sido operada por milagre -- isto é, por uma suspensão das leis da natureza -- e que o milagre foi obtido por intermédio de João Paulo II?
Não e não.
Primeiro, porque declarar que um fenômeno (no caso, uma cura) não tem explicação conhecida -- mesmo supondo que nenhum outro médico sobre a face da Terra, com um conjunto de competências e de experiências diferente do dos membros da comissão que investigou o caso, fosse capaz de explicar o ocorrido -- é apenas uma manifestação de ignorância.
Dizer "não sei o que provocou a cura de irmã Marie, logo foi um milagre operado por intercessão de João Paulo II" faz tanto sentido quanto dizer "não sei o que causou aquela luz no céu, logo ela veio de uma nave da galáxia de Andrômeda".
Segundo, a questão da atribuição: a freira rezou para João Paulo II, e depois foi curada. Faz sentido estabelecer uma relação de causa e efeito?
Em princípio, pode-se tratar apenas de um caso de post hoc ergo propter hoc, o erro lógico de supor que, só porque uma coisa aconteceu depois da outra, ela foi causada pela outra. É como imaginar que estou escrevendo esta postagem porque comi sanduíche de queijo no café da manhã. As causas precedem os efeitos, mas nem tudo que precede um efeito deve ser necessariamente lançado na lista de suas causas.
A hipótese de coincidência, em oposição à de causalidade direta, ganha força quando levamos em conta o fato de que candidatos a santo tão populares quanto João Paulo II costumam ser alvos de campanhas -- basicamente, os fãs do candidato passam a sugerir a todas as pessoas que conhecem e que precisam de um "milagre" que rezem para ele, solicitando a intercessão. Com milhares, ou milhões, de suplicantes, o surgimento de um ou dois casos que escapem ao poder explicativo das comissões investigatórias é uma certeza matemática.
Assim como nas eleições parlamentares brasileiras -- onde, dado um determinado nível de investimento em publicidade de campanha, a conquista do mandato é virtualmente inevitável -- deve haver um brake-even de orações que também torna a beatificação, e posterior santificação, de um candidato um fato garantido.
Resumindo, o sistema de reconhecimento de santos e beatos do Vaticano é formado por uma máquina de geração de eventos, a campanha, que multiplica as súplicas (às vezes por séculos a fio, se necessário) até que a lei das probabilidades gere um pequeno saldo a respeito do qual um grupo de especialistas esteja disposto a manifestar ignorância. A essa manifestação segue-se a aplicação de dois erros básicos de raciocínio: o apelo à ignorância e o post hoc.
(A parte sobre demônios e exorcismos fica num apêndice, que decidi redigir para preservar a prática jornalística de dar voz ao "outro lado", por assim dizer.)
A notícia de que o Vaticano reconheceu a cura de uma freira, supostamente portadora do Mal de Parkinson, como sendo um milagre operado por intercessão do falecido papa João Paulo II, chega num momento onde estou até as orelhas em estudos e análises a respeito exatamente desse tipo de fenômeno.
A mídia deu um bom destaque à história do milagre e, como sói acontecer nesses casos, sem basicamente nenhum tipo de análise crítica das falhas lógicas embutidas -- na verdade, falhas essenciais -- no processo católico de criação de beatos e santos.
É instrutivo, portanto, dar uma olhada em alguns detalhes do caso.
Começando pela questão da cura da freira Marie Simon-Pierre. Esta reportagem do Los Angeles Times lembra que, em 2010, autoridades no próprio Vaticano haviam expressado dúvidas quanto ao diagnóstico de Parkinson. É curioso ainda mencionar, numa nota à parte, que esclerose múltipla -- uma doença responsável por quatro milagres certificados do santuário de Lourdes, e que também afeta o sistema nervoso em sua comunicação com os músculos -- apresenta, de acordo com o psiquiatra Terence Hines, vários casos conhecidos de remissão natural.
Hines, em seu livro Pseudoscience and the Paranormal cita um estudo no qual o acompanhamento de pacientes de esclerose múltipla revelou que, 25 anos após o início da doença, 75% deles estavam vivos e dos sobreviventes, 55% não apresentavam nenhuma deficiência significativa.
Mesmo supondo que o diagnóstico da freira foi correto, e que ela não estivesse sofrendo de alguma outra doença mais facilmente curável (ou de uma aflição de origem psicológica), é possível afirmar (a menos que, num caso clássico de raciocínio circular, já se parta dessa premissa) que a cura tenha sido operada por milagre -- isto é, por uma suspensão das leis da natureza -- e que o milagre foi obtido por intermédio de João Paulo II?
Não e não.
Primeiro, porque declarar que um fenômeno (no caso, uma cura) não tem explicação conhecida -- mesmo supondo que nenhum outro médico sobre a face da Terra, com um conjunto de competências e de experiências diferente do dos membros da comissão que investigou o caso, fosse capaz de explicar o ocorrido -- é apenas uma manifestação de ignorância.
Dizer "não sei o que provocou a cura de irmã Marie, logo foi um milagre operado por intercessão de João Paulo II" faz tanto sentido quanto dizer "não sei o que causou aquela luz no céu, logo ela veio de uma nave da galáxia de Andrômeda".
Segundo, a questão da atribuição: a freira rezou para João Paulo II, e depois foi curada. Faz sentido estabelecer uma relação de causa e efeito?
Em princípio, pode-se tratar apenas de um caso de post hoc ergo propter hoc, o erro lógico de supor que, só porque uma coisa aconteceu depois da outra, ela foi causada pela outra. É como imaginar que estou escrevendo esta postagem porque comi sanduíche de queijo no café da manhã. As causas precedem os efeitos, mas nem tudo que precede um efeito deve ser necessariamente lançado na lista de suas causas.
A hipótese de coincidência, em oposição à de causalidade direta, ganha força quando levamos em conta o fato de que candidatos a santo tão populares quanto João Paulo II costumam ser alvos de campanhas -- basicamente, os fãs do candidato passam a sugerir a todas as pessoas que conhecem e que precisam de um "milagre" que rezem para ele, solicitando a intercessão. Com milhares, ou milhões, de suplicantes, o surgimento de um ou dois casos que escapem ao poder explicativo das comissões investigatórias é uma certeza matemática.
Assim como nas eleições parlamentares brasileiras -- onde, dado um determinado nível de investimento em publicidade de campanha, a conquista do mandato é virtualmente inevitável -- deve haver um brake-even de orações que também torna a beatificação, e posterior santificação, de um candidato um fato garantido.
Resumindo, o sistema de reconhecimento de santos e beatos do Vaticano é formado por uma máquina de geração de eventos, a campanha, que multiplica as súplicas (às vezes por séculos a fio, se necessário) até que a lei das probabilidades gere um pequeno saldo a respeito do qual um grupo de especialistas esteja disposto a manifestar ignorância. A essa manifestação segue-se a aplicação de dois erros básicos de raciocínio: o apelo à ignorância e o post hoc.
Olá Carlos! Gostaria de saber seu ponto de vista sobre duas coisas, se achar pertinente:
ResponderExcluirPrimeiro, o fato de que nesses casos de análise de milagres no Vaticano, há alguns especialistas ateus ou que estão lá justamente para questionar o suposto milagre... sei que isso não garante que o milagre é um milagre, mas não acha fortalece a ideia de que não há nenhuma explicação lógica para determinado fenômeno?
Segundo, sobre a coisa da campanha. Há casos como o do Pe. Cícero que é tido como um santo pela população do Nordeste brasileiro, e que se dependesse só de pressão popular já teria sido levado adiante o processo todo. Mas sabe-se que esse padre era uma figura polêmica, contraditória, que não se encaixa no "perfil" de um santo. A Igreja não o admite como santo.
Valeu! Abraço,
Oi, Filipe! Embora a comissão de investigação às vezes inclua "infiéis", e em alguns casos ateus sejam convidados a depor contra um candidato a santo (o jornalista Christopher Hitchens, por exemplo, apresentou duras críticas a Madre Teresa), essas contribuições geralmente acabam sendo minoritárias. E, de novo, mesmo que a comissão -- incluindo o ateu -- não consiga achar uma explicação: isso só significa que aquelas pessoas, naquele momento, são incapazes de explicar o ocorrido, não que algo sobrenatural ocorreu.
ResponderExcluir(E mesmo que se consiga provar que houve algo sobrenatural: quem garante que foi um milagre do santo e não, digamos, o diabo tentando causar confusão?)
Imagine, por exemplo, uma pedra radiativa na idade média: as pessoas talvez percebessem que quem ficasse muito tempo perto daquilo acabaria doente, mas não seriam capazes de explicar a causa. Mas isso não torna a pedra milagrosa (ou demoníaca).
Padre Cícero é um caso curioso. Imagino que devam existir já um ou dois fenômenos atribuídos a ele que caberiam na definição de milagre da Igreja. Mas o bloqueio contra ele é político. Além de estar morto e operar "milagres", o candidato a santo também precisa ter apoio no Vaticano, o que o Padre Cícero ainda não conseguiu -- o que é curioso, porque o Padre Pio, que foi uma espécie de Padre Cícero italiano, já foi canonizado.
Os milagres de cura fazem parte do canhestro proselitismo cristão. A propria natureza, (e consequentemente o propalado Deus) estabelecem prazo de validade à nossa estada. Portanto a doença, assim como a velhice, são obras de Deus - e como dele, "perfeitas". O milagre de revogá-las deveria servir como prova da estupenda vigarice que assola a humanidade. Já é tempo de liquidar com essa monstruosa tapeação. Os pstores e religiosos que tratem de ganhar o pão de cada dia de um modo honesto.
ResponderExcluirola
ResponderExcluiro padre quevedo sempre falava de um caso de ressucitação provado pela ciência no século XX, de um cara que chegou a ser exumado, teve seus orgãos internos removidos e acordou curado, numa boa. Isto eu lembro de entrevistas dele mas não encontro referência, vc saberia que caso é este?
Tiago, não faço a mais mínima ideia... O melhor seria procurar o padre e pedir detalhes a ele.
ResponderExcluirOlá Carlos, adorei sua postagem! Toda a mídia se volta para o acontecimento principal, "o milagre da cura", mas em momento algum, ou em muitas poucas vezes, se preocupam em falar sobre a veracidade do diagnóstico. A própria rede Globo apresentou uma reportagem no Fantástico onde só "venderam o peixe" da igreja....mas e os exames? Em momento algum da reportagem isso foi sequer comentado brevemente. Acredito que a seriedade na informação é alvo de extrema estima, ela deve ser imparcial, não tendenciosa. É exatamente o que vc disse em respostas anteriores, não é certo associar a consequencia do milagre a causa da prece! Isso é bem a cara do catolicismo, com suas velhas bases inalteradas durante os séculos....se não tem explicação foi Deus, ou algum santo, quem resolveu se manifestar!!!
ResponderExcluirTenho uma curiosidade, caso puder solucioná-la. Por que rezar para um santo se "é possível pedir diretamente a Deus"? Qual a necessidade de um intermediário? Quando isso surgiu ao longo da história?
Carlos, e muito dificil encontrar seus contos de sci fi aqui en Canada. Please if there is a way to purchase them online, let me know as I would love to include one of them in my pesquisa do estudos de doctorado.
ResponderExcluirHello! Some of my more recent work is avaiable for Kindle (there are links for those at the top right of this page). And there are a few of my short stories presently online, but even I have a hard time finding them, because they are somewhat old and were posted on the internet years ago. But you may search for "Nightscapes" (an old web zine of horror stories that published some of my material) and "Carlos Martinho", and somethimg ought to appear. And recently I was sent this link: http://clfc.tripod.com/mortalha.htm that contains a short story of mine.
ExcluirBest,
Carlos